Conto para a disciplina Oficina de Interpretação: baseada no estilo de Jack Kerouac, Jenny narra parte da história do filme Forrest Gump (1994) - do qual é personagem, pros desavisados.
1
A discoteca estava lotada tocando um dos hits daquele momento do qual nunca vou me lembrar. A luz vermelha, roxa, rosa, lilás, púrpura. Todos conversando animados, ou assim pareciam estar: gritando que só, buscando ser ouvidos mais do que a própria e a próxima música, todos bebendo; e todos conversando; e todos dançando; e todos flertando; e todos já se paquerando; e todos traçando planos. Minha mesa também estava repleta, seis pessoas numa daquelas mesas que tudo o que você tem é um globo de luz azul para iluminar algo branco é algo fantástico ou pelo menos era o que eu pensava naquela hora enquanto gargalhava tanto com aqueles completos desconhecidos que às vezes me pareciam assim tão comuns pelos seus sorrisos mil. Todos tão educados, me deixando cheirar cocaína ali mesmo, enquanto tagarelavam sobre algum assunto que a música abafava naquele lugar abafado.
Cocaína é uma coisa interessante e naquela hora eu pensei em fazer algo inovador, algo que me permitisse, finalmente, esquecer de todos os meus problemas e me concentrar apenas nas minhas soluções: a rua. Não a rua em si, mas o fato de cair na rua do alto de onde quer que eu estivesse, quão alto eu seria capaz de chegar ainda hoje? Mais tarde no apartamento com aquele mexicano estranho, toda a ideia parecia simplesmente genial quando o efeito todo resolveu passar e me deixar sozinha. Que situação horrenda. Meus olhos pareciam... Não sei o que pareciam, nunca consegui pensar no que pareciam, mas era alguma coisa nojenta, nojenta e preta. Era a hora. Havia uma varanda e a hora era agora, perfeito. Até uma cadeirinha pra eu subir e poder pular mais à vontade. Quantos carros lá embaixo, não deu pra contar. Quando eu começava, eles passavam, eu só via borrões, ficava com medo e tentava me concentrar no que tinha de fazer, mas ah, meu Deus, como era longe o lugar pra onde eu ia, e talvez fosse ainda mais longe que aquele asfalto maldito com mais uns carros passando em alta velocidade por aquele cruzamento perigoso. Quantos andares daria dali? Era mais alto que o prédio da frente. O prédio da frente tinha uns trinta, uns quarenta, tinha uns oitenta fácil, fácil. Era longe e ia doer, por Deus. Maldito salto alto que dói em meu pé, mas lá doeria mais. E os carros continuam, que agonia, mais dois passando, brilhando quase que nem a minha blusa... Deus, quase escorreguei. Não quero morrer. Não agora. Não, não, não, não, tudo errado, tudo. Não tá na hora, olha a lua. Não, não, vou vomitar. Não, não, não, não.
2
E então, eu estava lá. A vida é como uma caixa de chocolates: você nunca sabe o que vai encontrar. Mas quis e realmente encontrei Forrest naquela linda manhã enquanto ele cortava a grama já tão verdinha da casa do Gump. Tudo era branco e verde naquele dia, tudo estava lindo e talvez ele tenha se chocado, porque desligou o carrinho vermelho e veio me ver com um olhar intrigante e luvas nas mãos, apressou o passo e só foi interceptado num – Oi, Forrest – enquanto Forrest não sabia o que dizer, mas bastou um – Oi, Jenny – para fechar toda a situação. Eu estava feliz como não havia estado há muitos anos e corri para abraçá-lo. E estava cansada, Deus como estava cansada. Dormi durante um dia quase inteiro, dormi e dormi como se não tivesse dormido por anos e anos. Talvez por não ter para onde ir, mas era bom estar ali. Todo dia passeávamos pela região e Forrest falava sem parar sobre pingue-pongue; e sobre barcos de camarões; e sobre sua mãe que viajava para o céu; e eu preferia ficar calada e só ouvi-lo. A não ser quando passamos em frente a minha casa, e eu queria atirar lá minha alma, mas só tinha dois sapatos e algumas pedras e isso só seria o suficiente para quebrar a janela, devastante. Eu queria destruir tudo aquilo, mas vi que às vezes a vida não te dá pedras suficientes. Forrest estava do meu lado. Mas não deveria estar, eu queria estar sozinha e destruir toda aquela casa, eu tinha de fazer isso, mas levantar era difícil e eu só queria voltar para casa. A minha casa, não esta casa.
Não acho que Forrest se importava do motivo, mas eu estava de volta. Eu também não entendia o motivo, mas era tudo muito novo, apesar de antigo. Forrest devia pensar que era tudo como nos velhos tempos, que éramos como pão e manteiga outra vez, e todo dia ele colhia novas flores, e bonitas, para colocar no meu quarto. Ah, Forrest, pra ele eu dei um Nike, desses especiais para correr. E ensinei Forrest a dançar na medida do possível, e ali talvez até fôssemos como uma família, eu e Forrest, a época mais feliz da minha vida.
O 4 de julho foi algo estranho. Éramos como um família, eu e Forrest, e então ele me pediu em casamento enquanto eu ia para a cama. Ele parado perto da porta da sala, com o tênis ainda novo em folha e aquela cara que só Forrest era capaz de fazer. Ele daria um bom marido, é claro. – Mas você não quer se casar comigo. – Eu poderia garantir que era ele quem não queria se casar comigo. – Por que você não me ama, Jenny? Eu não sou um homem inteligente, mas eu sei o que é o amor. – Eu sabia daquilo tudo, mas o amor não era mais uma questão de amar e ser feliz. Eu amava, era feliz, tinha percebido. Mas amar não bastava em alguns casos e tudo o que eu queria era sumir daquelas escadas e não ver Forrest se humilhar por alguém que não lhe valia a pena, não importasse o que ele iria me dizer, não importasse o que eu iria dizer a ele. Forrest foi para a porta e eu fui para as escadas, mas como a vida podia ser tão complicada se há algumas horas eu era simplesmente tão feliz? Acabei aquela noite chuvosa no quarto de Forrest: – Forrest, eu te amo, sim. – Nos beijamos ternamente e eu mesma tirei minha bata. Forrest não sabia bem o que fazer, mas, Deus, também eu não sabia o que fazer e acho que queria fazê-lo, mas no fundo... No fundo valeu a pena, pude ver vários anos depois.
Mas no raso, de manhã bem cedo um táxi me esperava, numa manhã tão bela quanto aquela do reencontro. O moço de bigode me lia pelas passadas: – Para onde você está fugindo? – Mas eu não estava fugindo, não do modo como ele pensaria, porque eu fugia um pouco de Forrest e eu fugia de mim.
3
O tênis foi bem útil para Forrest porque ele tinha muito no que pensar, penso eu. Descobri quando vi na tevê que um jardineiro de Greenbow, Alabama, corria há mais de dois anos atravessando os Estados Unidos sem dar motivo algum, e cruzava pela quarta vez o rio Mississipi, e ah, Forrest, eu não poderia acreditar. Só corra, Forrest, corra.
13.12.09
10.12.09
Seu Baltazar, Vittorio De Sica e eu
Uma infecçãozinha de garganta me fez aceitar a intimação de mamãe e vir passar o fim de semana em Unaí - tomando por fim de semana o período entre quarta-feira e domingo. Fazia quase um mês que eu não vinha pra cá. Mas aquilo que seria um preview das férias tem sido interessante.
Lembro bem do nó na garganta logo em que cheguei na cidade, quarta à tarde. Não havia sombra das luzes de Natal! E não tinha movimento natalino, em pleno dia 9. Sinal de que a cidade cresceu e não acredita mais em Papai Noel. Eu seguia lembrando da infância comendo panetone, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 24. Ou o lombo trançado que mamãe fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 23. Ou o sorvete de panetone que dindinha fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 22. Eu sentia o gosto daquilo enquanto acelerava pra continuar na avenida e entregar pra coleção da vovó um frila que peguei pro Jornal de Brasília. Eu cresci, a cidade cresceu, mas a vovó ainda tá lá, firme nos seus poucos metros quadrados em que as clientes também não crescem, me chamam por nome e dizem como eu cresci.
O dia 10 foi mais incisivo. Unir três pontos cruciais da vida em uma só cena é coisa cinematográfica, fantástica. Ali estavam uma criancinha, um jovem ambicioso e... bem, o que estou virando, seja lá o que for. Algo meio Ieri, Oggi, Domani, aquele do Vittorio De Sica. Tirando o ponto de que nenhum dos meus três personagens é uma prostituta, juro. Tudo isso quando, enquanto caminhava avoado ouvindo Ligabue, vi o seu Baltazar.
Quem caminhava era um misto daquele que sou, com aquele que estou virando, com aquele que quero ser. Essas caminhadas que sempre me prometo e nem sempre executo, mas que dessa vez topei fazer depois de uma boa tempestade na cidade. Um reflexo da maturidade que chega com suas doenças e o monte de coisas que me convence a fazer algum exercício físico. Quem ouvia Ligabue era um um jovenzinho ambicioso, que com a música estava finalmente estava aprendendo italiano direito e sozinho, pela primeira vez (sozinho) pensava em fazer jornalismo, finalmente entendia (direito) futebol e implorava por sair dessa cidade de onde agora escreve. A criancinha dá uma história à parte. Adoro a criancinha. E adoro seu Baltazar.
Na memória mais antiga que tenho dos dois juntos, um pirralho ainda meio loirinho no baixo de seus seis anos disparava pelas escadas pra encontrar aquele senhor amável, com um Pralana caramelo desgastado na cabeça. O interfone do prédio estava estragado. Papai havia acabado de ligar avisando que seu Baltazar estava lá embaixo esperando. Seu Baltazar foi um dos ícones da minha infância. Fazia o melhor requeijão da cidade. Ou da cidade que eu tinha aos seis anos. E, o mais importante de tudo, naquele dia seu Baltazar havia guardado as rapas pra mim pela primeira vez. Rapa é uma coisa meio escura que fica no tacho quando se faz o requeijão - e mais gostosa que o próprio. Rapa é coisa boa, acredite. Enquanto morei ali, por nove anos, seu Baltazar sempre levou requeijão. E guardava minha rapa, sempre, num potinho de Doriana. E hoje eu nem sei mais se Doriana ainda existe.
Pois seu Baltazar sumiu depois que fui pro outro lado da cidade. Há uns três anos, papai disse que "o velho morreu". Foi um dia triste. Papai não costuma fazer rodeios para calar a boca de quem o atrapalha a assistir o jornal na TV e provavelmente nem sabia de quem eu perguntava. Feliz foi hoje, enquanto Ligabue cantava que os sonhos são todos grátis, ainda que quase todos já estejam usados. Na Cinecittà, De Sica poderia ter eternizado um velhinho que empurrava sua Monark azul de uma década atrás e cumprimentava um garoto que, aos poucos, avançaria num êxtase silencioso enquanto o senhor se distanciava com um potinho de Doriana em sua garupa. Um ladrão da bicicleta mais importante de uma infância.
Lembro bem do nó na garganta logo em que cheguei na cidade, quarta à tarde. Não havia sombra das luzes de Natal! E não tinha movimento natalino, em pleno dia 9. Sinal de que a cidade cresceu e não acredita mais em Papai Noel. Eu seguia lembrando da infância comendo panetone, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 24. Ou o lombo trançado que mamãe fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 23. Ou o sorvete de panetone que dindinha fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 22. Eu sentia o gosto daquilo enquanto acelerava pra continuar na avenida e entregar pra coleção da vovó um frila que peguei pro Jornal de Brasília. Eu cresci, a cidade cresceu, mas a vovó ainda tá lá, firme nos seus poucos metros quadrados em que as clientes também não crescem, me chamam por nome e dizem como eu cresci.
O dia 10 foi mais incisivo. Unir três pontos cruciais da vida em uma só cena é coisa cinematográfica, fantástica. Ali estavam uma criancinha, um jovem ambicioso e... bem, o que estou virando, seja lá o que for. Algo meio Ieri, Oggi, Domani, aquele do Vittorio De Sica. Tirando o ponto de que nenhum dos meus três personagens é uma prostituta, juro. Tudo isso quando, enquanto caminhava avoado ouvindo Ligabue, vi o seu Baltazar.
Quem caminhava era um misto daquele que sou, com aquele que estou virando, com aquele que quero ser. Essas caminhadas que sempre me prometo e nem sempre executo, mas que dessa vez topei fazer depois de uma boa tempestade na cidade. Um reflexo da maturidade que chega com suas doenças e o monte de coisas que me convence a fazer algum exercício físico. Quem ouvia Ligabue era um um jovenzinho ambicioso, que com a música estava finalmente estava aprendendo italiano direito e sozinho, pela primeira vez (sozinho) pensava em fazer jornalismo, finalmente entendia (direito) futebol e implorava por sair dessa cidade de onde agora escreve. A criancinha dá uma história à parte. Adoro a criancinha. E adoro seu Baltazar.
Na memória mais antiga que tenho dos dois juntos, um pirralho ainda meio loirinho no baixo de seus seis anos disparava pelas escadas pra encontrar aquele senhor amável, com um Pralana caramelo desgastado na cabeça. O interfone do prédio estava estragado. Papai havia acabado de ligar avisando que seu Baltazar estava lá embaixo esperando. Seu Baltazar foi um dos ícones da minha infância. Fazia o melhor requeijão da cidade. Ou da cidade que eu tinha aos seis anos. E, o mais importante de tudo, naquele dia seu Baltazar havia guardado as rapas pra mim pela primeira vez. Rapa é uma coisa meio escura que fica no tacho quando se faz o requeijão - e mais gostosa que o próprio. Rapa é coisa boa, acredite. Enquanto morei ali, por nove anos, seu Baltazar sempre levou requeijão. E guardava minha rapa, sempre, num potinho de Doriana. E hoje eu nem sei mais se Doriana ainda existe.
Pois seu Baltazar sumiu depois que fui pro outro lado da cidade. Há uns três anos, papai disse que "o velho morreu". Foi um dia triste. Papai não costuma fazer rodeios para calar a boca de quem o atrapalha a assistir o jornal na TV e provavelmente nem sabia de quem eu perguntava. Feliz foi hoje, enquanto Ligabue cantava que os sonhos são todos grátis, ainda que quase todos já estejam usados. Na Cinecittà, De Sica poderia ter eternizado um velhinho que empurrava sua Monark azul de uma década atrás e cumprimentava um garoto que, aos poucos, avançaria num êxtase silencioso enquanto o senhor se distanciava com um potinho de Doriana em sua garupa. Um ladrão da bicicleta mais importante de uma infância.
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