28.4.09

Dou-lhe uma, dou-lhe duas

Tudo bem que é indie assistir leilão de gado no Canal do Boi. Todo aquele calafrio para saber se a fêmea que o leiloeiro apresenta está preparada para inseminação artificial, qual a parcela mínima e o prazo, quem são as matrizes, qual o nível do registro... Ah, como é bom fazer carão e desprezar quem acha que vai arrematar aquele monstruoso filho do Fajardo, um PO legítimo, por apenas 36 parcelas de três mil e quinhentos reais.

Indie mesmo é ir ao tatersal e assistir um leilão dando os lances pessoalmente, não sem antes verificar cada um dos lotes nos currais e depois churrascar com o leiloeiro numa roda de viola. Pois papai é indie. E tem programa para todas as noites de terças e quintas: um bom leilão de gado, mesmo em período de seca.

Papai diz que a diferença entre assistir em casa e pessoalmente é a mesma entre futebol no estádio e no sofá. Eu é que não vou discordar. A infância alternando a marcação das cotações com goles de Fanta Uva não me permite pensar outra coisa. No futebol as torcidas brigam fora do estádio. No leilão roubaram a caminhonete do papai.

Uma coisa é roubar algo de alguém em algum lugar qualquer. Outra é roubar a caminhonete do papai em seu segundo lar. Ele sabia disso. E boa parte do tatersal também. Quando papai teve de ir embora mais cedo e o estacionamento tinha uma F250 a menos, não foi preciso mais de quinze minutos para que o leilão virasse feira e pelo menos dez outras caminhonetes saíssem cantando pneu em busca da de papai. Porque papai, tatersalmente falando, é homem de respeito. E, em Minas, com homem de respeito não se mexe.

A polícia de Unaí costuma comentar que é praticamente impossível encontrar alguém que fuja em direção à zona rural da cidade. O labirinto de estradas dentro das fazendas torna a missão quase impossível para as viaturas. O caso é que descobri que falta sangue nos olhos da polícia. Porque a partir do momento em que a possante Nissan do dono do tatersal entrou na busca, não foi preciso mais de trinta minutos para que os celulares começassem a tocar e todos partirem para o mesmo lugar.

Se estavam acostumados em festa na Tucaneiros, o host do dia era papai. O ladrão, pobre diabo, tinha parado para pensar em uma fuga, mas ainda estava em sua área. Pior de tudo, sozinho. E papai nem precisou estar armado para tirar aquela sujeira de dentro da sua caminhonete e, dou-lhe uma, dou-lhe duas, convencê-lo de uma forma nada blasé de que seria melhor ele nunca mais voltasse a pisar em Unaí. Afinal, não é o fato de papai ser indie que tira o poder de suas ofertas irrecusáveis.

22.4.09

Pamonha!

Lembro-me como se fosse amanhã quando a família se reuniu na casa de vovó num dia qualquer de 1992 para aproveitar a temporada de milho e unir todos os credos daquele pessoal em torno de uma só razão: a pamonha. O puro creme do milho verde. Quente, fresco e caseiro. E com gosto da tardinha de sexta-feira correndo no alpendre da casa de vovó. Afinal, nada mais mineiro que família grande, adultos fazendo pamonha, crianças correndo no alpendre e uma ou outra com aquela tal de idéia de jerico pra tentar implodir todo o plano-sequência planejado pela vovó.

Pois, naquele dia fatídico, deixei de lado minha missão narrativa para me concentrar em um confronto individual com o Lucas. Ele pisou no meu pé. Eu chutei o joelho dele. Que puxou meu cabelo. E teve sua orelha mordida. E se aproveitou disso pra tentar me enforcar e conseguir pelo menos sufocar meu grito por qualquer uma das mulheres da família que nem estavam assim tão longe mas ainda assim não ouviam nada. Mas ufa. A bandeira branca da trégua valia pela batalha, não pela guerra.

Porque toda criança de dois ou três anos sabe que a verdadeira guerra é pela atenção dos adultos. A relação entre os outros pirralhos não importa muito se a vovó corre pra acudir pouco antes da panela de água fervente cair em cima de você. E para recuperar o terreno provando a superioridade, a carta na manga era melhor que um Coringa qualquer: o Batman.

E enquanto as mulheres separavam e empilhavam e enchiam e amarravam e ferviam as palhas cheias daquele creme de milho, o espírito de super-herói fez nosso pequeno anti-herói se desvencilhar do Lucas e pular no sofá para alcançar aquela janela que, vista do alpendre, era maior do que qualquer um dos tios da família. Do alto daqueles dois metros, uns cabelinhos meio loiros gritaram "Eu sou o Batman!" ao mesmo tempo em que o vento os consumia e mamãe e vovó só não corriam em sua direção mais rápido do que o próprio piso do alpendre.

Papai garantiu que o protótipo de Batman era mais pamonha do que o milho que cozinhava na panela em mais uma das sextas-feiras quaisquer de colheita. Com razão. Só no filme de 2005 é que resolveram fazer com que o Bruce Wayne voasse. Até lá, a queda era garantida. Esperta era mamãe, que aconselhou seu pequeno a se identificar como Clark Kent no próximo salto.

18.4.09

A verdadeira Brasília

Brasília é uma capital triste. Cidade de tanta gente só. De obviedade derramada no semiárido.

Passava pouco das dez da noite, quando decidi por um sanduíche para alimentar o sábado. Numa comercial não muito movimentada da Asa Norte, todas as seis mesas estavam ocupadas. Três por pessoas sozinhas e três por mais de uma pessoa desacompanhada. Solteiras ou não, solitárias. Porque Brasília é uma cidade estranha, veja bem. Teve as chances de ser um ode à sociabilidade, graças à imigração interminável e impiedosa que ainda lhe lota. Ilusão.

Tem propriedade para falar disso quem provou sua independência atravessando um dia sete com quarenta graus sobre os lençóis e por cinco dias seguidos vomitou a alma junto de seu ego. Porque o ego é a melhor fuga para pessoas solitárias, por se basear no orgulho próprio e em tentativas de encontrar a si mesmo na admiração alheia: a felicidade é secundária quando a sociedade aprova a tristeza. A mesma sociedade utópica criada por uma cidade-ilusão.

O exílio não saiu de moda onde caiu o militarismo e se enraizou a democracia. Mas ninguém é mandado para o exílio em Brasília por algum inimigo. É como mandar uma carta a si mesmo pelo correio, na verdade. O autoexílio na capital se tornou tão comum que parece surreal a visão de pessoas realmente felizes. Como as que cantavam parabéns a plenos pulmões no bar do bloco ao lado. Mas, em Brasília, você ignora essa mesa e fixa o olhar na criança atirada à grama com cara de poucos amigos depois de ter colocado o dedo no bolo antes da hora.

Normal em qualquer outro lugar, o garoto ganha em Brasília um misticismo incomum e ares de cartão postal. Então esqueça a catedral, o congresso, a ponte JK. Pense num garotinho loiro de sete anos tostado pelo sol e com jeans surrados. Se algum dia vier a Brasília, mande isso a seus amigos. A verdadeira Brasília.

13.4.09

Pedro pedreiro pela paz

Pedro pedreiro decidiu encontrar a paz
De universal a cristão, indo de bar em bar
Às voltas com os problemas que a cerveja traz
Umas vezes com a bíblia, outras no bilhar
Na saideira prometeu
"Salvador daqui sou eu"

Logo de cara decidiu "vou pra Israel
Problema tá lá, diz o Jornal Nacional
Propaganda diz que é só assinar uns papel
Fátima acha que é questão de bem contra o mal"
Pedro assim entrou na ONG
Sofrimento que se alongue

Pedreiro penseiro que ia esperar o trem
Esperando a ficha, esperando as intenções
Esperando o sol, esperando lá quem vem
Pra salvar de guerrilhas, enchentes, moções
Pobre diabo achou legal
Do bairro agora era o tal

Subiu num ônibus que levava ao Galeão
Quarenta e quatro horas embaixo de sol quente
Pra altitude de La Paz o primeiro avião
Na mala só caneta, cueca, escova e pente
A seu lado o observava
Uma infeliz iugoslava

"Em busca da paz me mandaram viajar
Todos felizes agora é questão de tempo
Na cordilheira ou numa calota polar
Pela nossa ONG encontrarão seu sustento"
A balcânica então riu
"Meu Deus, primeiro de abril!"

Pelas ruas de La Paz viu manifestações
Mas com os nativos não resolvia só no grito
Percebeu que lhe faltavam reais instruções
Agora só tinha mesmo a Santo Expedito
"Valha-me, paizinho meu!
Vê em que Pedro se meteu"

Ivana foi-se preparar para o socorro
Tolo era o homem, mas o coração era bom
Não precisava desse louco mato-ou-morro
Juntos poderiam se sentir num mesmo tom
Destino então era Belgrado
Sorte agora havia virado

Vida na Sérvia voltou ao tijolo-e-cimento
Paz era fácil de encontrar dentro de dois
À bondade o pedreiro estava agora atento
Primeiro o próprio, o restante vinha depois
No sossego surgia a calma
Que sua alma não mais espalma

7.4.09

Estrondo verde

Nem todo latino fala espanhol e nem todo extraterrestre é marciano. A bandeira da causa jupiteriana voltou a tremular na semana que antecede as comemorações do sexagésimo aniversário – pouco mais de sete séculos terrestres – do habitante mais popular daquele planeta. Na ressaca da festa de 80 anos de Hebe Camargo, o verde tomou as páginas das revistas de celebridades com o retorno de Etezinho Verde das Antenas Longas à Terra, um "divórcio" que estava prestes a alcançar seu centenário.

Dono dos mais marcantes olhos âmbares do sistema solar, desde sua primeira aparição em solo terrestre Etezinho Verde tornou-se a principal prova de vida extraterrena. E nunca aceitou desconfiança dos seres humanos. Afinal, como na frase que celebrizou, "pra sair voando em carrinho de supermercado, só mesmo ET de Hollywood. Com tudo o que temos passado com a Grande Mancha Vermelha, nos machuca a desconfiança dos terráqueos".

Nascido em Ganímedes, satélite de Júpiter, Etezinho Verde teve uma infância complicada. Com a transferência do pai para Saturno, jamais se adaptou àquela atmosfera repleta de hélio e só teve a saúde normalizada ao poder respirar todo o metano de seu planeta de origem. Ou não. Uma tempestade que parecia passageira ganhou nome duas décadas depois do início dos ventos de 500 km/h e a Grande Mancha Vermelha já está ativa há mais de 400 anos terrestres.

Boa parte da população do planeta foi devastada e o simpático Etezinho Verde se empenhou numa viagem para a desconhecida Terra na desesperada tentativa de sobrevivência. Sua chegada ajudou Galileu a comprovar a descoberta das luas de Júpiter, mas o alvoroço criado pelo tribunal do Santo Ofício fez com que o extraterrestre deixasse de dar suas contribuições para o conhecimento humano.

Ainda assim, Etezinho Verde das Antenas Longas continuou célebre com a ajuda de empresas que sempre souberam explorar sua popularidade: seja na linha autorizada de action-figures da Mattel ou na concorrida versão do Lego: Comando Espacial Júpiter. De volta à Terra, tem na agenda palestras motivacionais e encontros com importantes figuras políticas do cenário internacional. Além, claro, de algumas noites de autógrafos com as crianças que ajudaram a manter sua fama perene a tantos anos-luz de distância.

1.4.09

O lobo e a ovelha

Após ser atacado por uma matilha de cães, um lobo ferido repousava a certa distância de um riacho. Debilitado e faminto, aguardava desesperado por algum auxílio. Até que percebeu uma ovelha se aproximar e implorou-lhe por um pouco da água do regato.

"Se você me trouxer água," argumentou o lobo, "estarei em condições de conseguir meu próprio alimento. E é claro que sempre me lembrarei de seu gesto".

A ovelha não teve problemas para pensar um pouco, calcular seus riscos e decidir que seria melhor ajudar o lobo que agora estava ferido e poderia em algum momento se recuperar e se vingar da omissão. E assim a ovelha cuidou do lobo até o resto do dia e, ao cair da noite, tornou-se seu alimento.

Moral da história: um hipócrita tem palavras gentis e disfarça suas verdadeiras intenções - mas, se nele a vítima confia, não tem muito do que reclamar.