A cada reportagem no site do Correio sobre minorias sociais, étnicas ou sexuais, o comportamento se repete. Nas caixas de comentários do Facebook, os reis de curtidas costumam ser as variações mais rudimentares de “obrigado por não mudar minha vida”, “mas tem que ver a verdade disso aí”, “por que não falam sobre os homicídios do homem branco heterossexual?”.
A esse comentarista, uma má notícia: tamanha ojeriza por determinado assunto te mantém sitiado. Os algoritmos que fizeram do Facebook a rede social mais movimentada do mundo constroem suas bolhas de conteúdo baseadas no interesse do usuário — e, como qualquer robô, são incapazes de entender se sua relação é de amor ou ódio com aquele tema. Em termos práticos, quanto mais você xingar dinossauros, mais vezes eles estarão na sua tela.
Essa tendência se reforçou desde o fim da semana passada, quando o Facebook fez a primeira grande atualização do algoritmo em 2017. Agora, o conteúdo exibido na linha do tempo do usuário virá principalmente das ações dos amigos, deixando menos espaço para as páginas que não patrocinem conteúdo. Em termos práticos, se você seguir xingando dinossauros depois disso, mais vezes ainda eles estarão na sua tela.
Nossos hábitos de navegação alimentam essa bolha. Se eu e você temos os mesmos 500 amigos, o que curtimos e comentamos fará com que, em poucos dias, apareça um conteúdo totalmente diferente para cada um. Eis a bolha em funcionamento.
Depois que entendemos o funcionamento dela, a existência não se torna necessariamente ruim. A bolha surge para preservar nossa sanidade mental. É algo que sempre existiu — ou nossos avós escolhiam seus compadres priorizando a falta de afinidade? —, mas agora é manipulada por programadores que se aproveitam do sistemático furto dos dados pessoais que colocamos à disposição dos gigantes da tecnologia global.
O efeito irremediável dos insultos do Facebook é o de te integrar na bolha alheia. Como no último dos Doze contos peregrinos de Gabriel García Márquez, cada comentário publicado é como um rastro de sangue deixado na neve. E pode ser tarde demais quando for descoberto o motivo da hemorragia.
Artigo publicado no Correio Braziliense de 16 de janeiro de 2017
16.1.17
9.1.17
[Correio] A culpa é da corrupção
Por que não percebemos que dezenas de detentos estavam prestes a morrer degolados por causa da disputa de poder entre as duas maiores facções do crime organizado brasileiro? Os clãs que dominam as cadeias do país haviam rompido, em outubro, seu curioso acordo de paz. No mês seguinte, uma governadora foi ignorada pelo ministro da Justiça ao pedir apoio urgente. Essas cartas e tantas outras estavam à mostra, mas ignoramos o rumo do jogo.
Estávamos unidos ao não notar a estruturação dos massacres do Norte. Passou batido da sociedade, de nossas entidades representativas e de nossos investigadores. Só depois da primeira carnificina, a de Manaus, a Procuradoria-Geral da República teve a ideia de investigar o sistema penitenciário de quatro estados. Uma ação de marketing, típica do Executivo, em pleno Judiciário.
E a culpa é da corrupção. Sim, ela, a onipresente senhora das páginas de jornal e de revista, dos minutos de TV, das conversas de botequim e das exaltações infinitas em cada família brasileira a cada fase da Operação Lava-Jato.
O holofote mantido sobre os desvios bilionários e a apropriação da coisa pública levantaram uma cortina de fumaça capaz de impedir que qualquer outro tema ganhe espaço como debate nacional. Que a corrupção seja repudiada, perseguida, esconjurada. Mas a busca incessante da sociedade por heróis e vilões, 24 horas por dia, é que permite que o país saia andando sem que a babá eletrônica esteja ligada.
Acabamos assustados quando a edição de uma medida provisória virou do avesso o ensino médio? É porque não notamos que esse rumo vinha sendo tomado desde o desmanche do Conselho Nacional de Educação. Os investidores se surpreenderam com a entrega de campos do pré-sal a multinacionais em menos de um semestre de governo Temer? Faltou atenção ao texto da Ponte para o futuro e seus desdobramentos.
Os exemplos valem para a PEC do teto de gastos, a reforma da previdência com privilégios de classe mantidos, a precarização que bate à porta com a “modernização” das relações de trabalho. Enquanto o Brasil andava, a população se debruçava nas impraticáveis 10 medidas contra a corrupção, transformada pelo Congresso Nacional em 10 medidas nem tão desfavoráveis assim à corrupção. Em suma, tanta discussão para nada.
Você odeia, eu sei, a corrupção-sistêmica-que-aflige-a-política-brasileira-desde-os-tempos-do-império tanto quanto qualquer outro brasileiro-que-trabalha-5-meses-para-pagar-imposto. Mas deixo aqui uma proposição que possa ser seguida por algum tempo: até o dia 31, deixemos de pensar em planos e punições infalíveis contra a corrupção. Só um pouco, o suficiente para que deixemos de ser pegos de surpresa. E então, quer falar de quê?
Estávamos unidos ao não notar a estruturação dos massacres do Norte. Passou batido da sociedade, de nossas entidades representativas e de nossos investigadores. Só depois da primeira carnificina, a de Manaus, a Procuradoria-Geral da República teve a ideia de investigar o sistema penitenciário de quatro estados. Uma ação de marketing, típica do Executivo, em pleno Judiciário.
E a culpa é da corrupção. Sim, ela, a onipresente senhora das páginas de jornal e de revista, dos minutos de TV, das conversas de botequim e das exaltações infinitas em cada família brasileira a cada fase da Operação Lava-Jato.
O holofote mantido sobre os desvios bilionários e a apropriação da coisa pública levantaram uma cortina de fumaça capaz de impedir que qualquer outro tema ganhe espaço como debate nacional. Que a corrupção seja repudiada, perseguida, esconjurada. Mas a busca incessante da sociedade por heróis e vilões, 24 horas por dia, é que permite que o país saia andando sem que a babá eletrônica esteja ligada.
Acabamos assustados quando a edição de uma medida provisória virou do avesso o ensino médio? É porque não notamos que esse rumo vinha sendo tomado desde o desmanche do Conselho Nacional de Educação. Os investidores se surpreenderam com a entrega de campos do pré-sal a multinacionais em menos de um semestre de governo Temer? Faltou atenção ao texto da Ponte para o futuro e seus desdobramentos.
Os exemplos valem para a PEC do teto de gastos, a reforma da previdência com privilégios de classe mantidos, a precarização que bate à porta com a “modernização” das relações de trabalho. Enquanto o Brasil andava, a população se debruçava nas impraticáveis 10 medidas contra a corrupção, transformada pelo Congresso Nacional em 10 medidas nem tão desfavoráveis assim à corrupção. Em suma, tanta discussão para nada.
Você odeia, eu sei, a corrupção-sistêmica-que-aflige-a-política-brasileira-desde-os-tempos-do-império tanto quanto qualquer outro brasileiro-que-trabalha-5-meses-para-pagar-imposto. Mas deixo aqui uma proposição que possa ser seguida por algum tempo: até o dia 31, deixemos de pensar em planos e punições infalíveis contra a corrupção. Só um pouco, o suficiente para que deixemos de ser pegos de surpresa. E então, quer falar de quê?
Artigo publicado no Correio Braziliense de 9 de janeiro de 2017
2.1.17
[Correio] Que 2017 seja flicts
As primeiras horas do ano-novo podem ter te surpreendido: tirando a ressaca de praxe, nada mudou. A segunda-feira que abre 2017 é só mais um dia que nasce depois de o Fantástico se por. O sadismo de 2016 segue à espreita, com a ameaça velada de que o novo ano pode ser ainda mais incômodo.
Este 2017 servirá para entender a extensão da parceria entre Donald Trump e Vladimir Putin. Será o ano de Marine Le Pen na França, de Geert Wilders na Holanda, da ameaça populista Nicolás Larraín no Chile. Da mundialização do Estado Islâmico, do estouro da bolha imobiliária chinesa, do esgotamento da política monetária do Banco Central Europeu.
E os problemas lá de fora continuarão a nos acossar — como se fosse necessário. No ano em que ainda mais estados terão dificuldade para pagar o funcionalismo, testemunharemos o ápice do desemprego, as greves inevitáveis por causa das negociações salariais paralisadas, o PIB provavelmente em queda por mais um ano. E o Brasil terá de fazer as contas com qualquer que seja a decisão do Tribunal Superior Eleitoral no processo que pode tirar Michel Temer da presidência.
Num mundo dominado por caixas de comentários do Facebook e grupos de WhatsApp, não haverá como fugir do acirramento que virou o tal “Fla-Flu político”. Ainda que, em tantas famílias e reuniões de amigos, o confronto esteja mais para Al Ahly x Zamalek, o clássico egípcio que registrou feridos e presos em todas as partidas desta década.
Mas nada é só preto. Nada é só branco. Para além do dualismo infrutífero, surge uma zona cinzenta, na qual estamos todos, escritor e leitor, nossos heróis e vilões. E deve haver, sobretudo, a zona flicts, longe desse matiz intermediário.
Flicts é aquela cor frágil, rara, criada por Ziraldo há meio século para protagonizar o primeiro livro infantil do cartunista que se consagraria com o Menino Maluquinho e a Turma do Pererê. Flicts não conseguia se encaixar em arco-íris, bandeiras, lugar nenhum. A história mostra a saga de uma cor em busca de seu lugar no universo.
Nem só de petralhas é composta a esquerda; a direita vai além dos barulhentos bolsominions. E entre as duas há uma lacuna muito maior do que o centro isentão. Você é flicts.
Para os de exatas, Flicts é a combinação 212,145,38 na escala RGB. Para quem é de humanas mesmo, é um tom pastel, baunilha meio escuro, talvez amarelo-queimado, com um toque de açafrão, um quê de cobre. Cada pai teve uma resposta diferente para o “que cor é essa?” dos baixinhos que não aceitavam flicts enquanto nome de uma tinta, exigindo uma palavra consagrada pela escala Pantone. Flicts é a cor de todos nós, ainda que não a enxerguemos. Que seja o tom de 2017.
Este 2017 servirá para entender a extensão da parceria entre Donald Trump e Vladimir Putin. Será o ano de Marine Le Pen na França, de Geert Wilders na Holanda, da ameaça populista Nicolás Larraín no Chile. Da mundialização do Estado Islâmico, do estouro da bolha imobiliária chinesa, do esgotamento da política monetária do Banco Central Europeu.
E os problemas lá de fora continuarão a nos acossar — como se fosse necessário. No ano em que ainda mais estados terão dificuldade para pagar o funcionalismo, testemunharemos o ápice do desemprego, as greves inevitáveis por causa das negociações salariais paralisadas, o PIB provavelmente em queda por mais um ano. E o Brasil terá de fazer as contas com qualquer que seja a decisão do Tribunal Superior Eleitoral no processo que pode tirar Michel Temer da presidência.
Num mundo dominado por caixas de comentários do Facebook e grupos de WhatsApp, não haverá como fugir do acirramento que virou o tal “Fla-Flu político”. Ainda que, em tantas famílias e reuniões de amigos, o confronto esteja mais para Al Ahly x Zamalek, o clássico egípcio que registrou feridos e presos em todas as partidas desta década.
Mas nada é só preto. Nada é só branco. Para além do dualismo infrutífero, surge uma zona cinzenta, na qual estamos todos, escritor e leitor, nossos heróis e vilões. E deve haver, sobretudo, a zona flicts, longe desse matiz intermediário.
Flicts é aquela cor frágil, rara, criada por Ziraldo há meio século para protagonizar o primeiro livro infantil do cartunista que se consagraria com o Menino Maluquinho e a Turma do Pererê. Flicts não conseguia se encaixar em arco-íris, bandeiras, lugar nenhum. A história mostra a saga de uma cor em busca de seu lugar no universo.
Nem só de petralhas é composta a esquerda; a direita vai além dos barulhentos bolsominions. E entre as duas há uma lacuna muito maior do que o centro isentão. Você é flicts.
Para os de exatas, Flicts é a combinação 212,145,38 na escala RGB. Para quem é de humanas mesmo, é um tom pastel, baunilha meio escuro, talvez amarelo-queimado, com um toque de açafrão, um quê de cobre. Cada pai teve uma resposta diferente para o “que cor é essa?” dos baixinhos que não aceitavam flicts enquanto nome de uma tinta, exigindo uma palavra consagrada pela escala Pantone. Flicts é a cor de todos nós, ainda que não a enxerguemos. Que seja o tom de 2017.
Artigo publicado no Correio Braziliense de 2 de janeiro de 2017
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