16.1.17

[Correio] O silêncio e a sanidade

A cada reportagem no site do Correio sobre minorias sociais, étnicas ou sexuais, o comportamento se repete. Nas caixas de comentários do Facebook, os reis de curtidas costumam ser as variações mais rudimentares de “obrigado por não mudar minha vida”, “mas tem que ver a verdade disso aí”, “por que não falam sobre os homicídios do homem branco heterossexual?”.

A esse comentarista, uma má notícia: tamanha ojeriza por determinado assunto te mantém sitiado. Os algoritmos que fizeram do Facebook a rede social mais movimentada do mundo constroem suas bolhas de conteúdo baseadas no interesse do usuário — e, como qualquer robô, são incapazes de entender se sua relação é de amor ou ódio com aquele tema. Em termos práticos, quanto mais você xingar dinossauros, mais vezes eles estarão na sua tela.

Essa tendência se reforçou desde o fim da semana passada, quando o Facebook fez a primeira grande atualização do algoritmo em 2017. Agora, o conteúdo exibido na linha do tempo do usuário virá principalmente das ações dos amigos, deixando menos espaço para as páginas que não patrocinem conteúdo. Em termos práticos, se você seguir xingando dinossauros depois disso, mais vezes ainda eles estarão na sua tela.

Nossos hábitos de navegação alimentam essa bolha. Se eu e você temos os mesmos 500 amigos, o que curtimos e comentamos fará com que, em poucos dias, apareça um conteúdo totalmente diferente para cada um. Eis a bolha em funcionamento.

Depois que entendemos o funcionamento dela, a existência não se torna necessariamente ruim. A bolha surge para preservar nossa sanidade mental. É algo que sempre existiu — ou nossos avós escolhiam seus compadres priorizando a falta de afinidade? —, mas agora é manipulada por programadores que se aproveitam do sistemático furto dos dados pessoais que colocamos à disposição dos gigantes da tecnologia global.


O efeito irremediável dos insultos do Facebook é o de te integrar na bolha alheia. Como no último dos Doze contos peregrinos de Gabriel García Márquez, cada comentário publicado é como um rastro de sangue deixado na neve. E pode ser tarde demais quando for descoberto o motivo da hemorragia.

Artigo publicado no Correio Braziliense de 16 de janeiro de 2017

9.1.17

[Correio] A culpa é da corrupção

Por que não percebemos que dezenas de detentos estavam prestes a morrer degolados por causa da disputa de poder entre as duas maiores facções do crime organizado brasileiro? Os clãs que dominam as cadeias do país haviam rompido, em outubro, seu curioso acordo de paz. No mês seguinte, uma governadora foi ignorada pelo ministro da Justiça ao pedir apoio urgente. Essas cartas e tantas outras estavam à mostra, mas ignoramos o rumo do jogo.

Estávamos unidos ao não notar a estruturação dos massacres do Norte. Passou batido da sociedade, de nossas entidades representativas e de nossos investigadores. Só depois da primeira carnificina, a de Manaus, a Procuradoria-Geral da República teve a ideia de investigar o sistema penitenciário de quatro estados. Uma ação de marketing, típica do Executivo, em pleno Judiciário.

E a culpa é da corrupção. Sim, ela, a onipresente senhora das páginas de jornal e de revista, dos minutos de TV, das conversas de botequim e das exaltações infinitas em cada família brasileira a cada fase da Operação Lava-Jato.

O holofote mantido sobre os desvios bilionários e a apropriação da coisa pública levantaram uma cortina de fumaça capaz de impedir que qualquer outro tema ganhe espaço como debate nacional. Que a corrupção seja repudiada, perseguida, esconjurada. Mas a busca incessante da sociedade por heróis e vilões, 24 horas por dia, é que permite que o país saia andando sem que a babá eletrônica esteja ligada.

Acabamos assustados quando a edição de uma medida provisória virou do avesso o ensino médio? É porque não notamos que esse rumo vinha sendo tomado desde o desmanche do Conselho Nacional de Educação. Os investidores se surpreenderam com a entrega de campos do pré-sal a multinacionais em menos de um semestre de governo Temer? Faltou atenção ao texto da Ponte para o futuro e seus desdobramentos.

Os exemplos valem para a PEC do teto de gastos, a reforma da previdência com privilégios de classe mantidos, a precarização que bate à porta com a “modernização” das relações de trabalho. Enquanto o Brasil andava, a população se debruçava nas impraticáveis 10 medidas contra a corrupção, transformada pelo Congresso Nacional em 10 medidas nem tão desfavoráveis assim à corrupção. Em suma, tanta discussão para nada.

Você odeia, eu sei, a corrupção-sistêmica-que-aflige-a-política-brasileira-desde-os-tempos-do-império tanto quanto qualquer outro brasileiro-que-trabalha-5-meses-para-pagar-imposto. Mas deixo aqui uma proposição que possa ser seguida por algum tempo: até o dia 31, deixemos de pensar em planos e punições infalíveis contra a corrupção. Só um pouco, o suficiente para que deixemos de ser pegos de surpresa. E então, quer falar de quê?

Artigo publicado no Correio Braziliense de 9 de janeiro de 2017

2.1.17

[Correio] Que 2017 seja flicts

As primeiras horas do ano-novo podem ter te surpreendido: tirando a ressaca de praxe, nada mudou. A segunda-feira que abre 2017 é só mais um dia que nasce depois de o Fantástico se por. O sadismo de 2016 segue à espreita, com a ameaça velada de que o novo ano pode ser ainda mais incômodo.

Este 2017 servirá para entender a extensão da parceria entre Donald Trump e Vladimir Putin. Será o ano de Marine Le Pen na França, de Geert Wilders na Holanda, da ameaça populista Nicolás Larraín no Chile. Da mundialização do Estado Islâmico, do estouro da bolha imobiliária chinesa, do esgotamento da política monetária do Banco Central Europeu.

E os problemas lá de fora continuarão a nos acossar — como se fosse necessário. No ano em que ainda mais estados terão dificuldade para pagar o funcionalismo, testemunharemos o ápice do desemprego, as greves inevitáveis por causa das negociações salariais paralisadas, o PIB provavelmente em queda por mais um ano. E o Brasil terá de fazer as contas com qualquer que seja a decisão do Tribunal Superior Eleitoral no processo que pode tirar Michel Temer da presidência.

Num mundo dominado por caixas de comentários do Facebook e grupos de WhatsApp, não haverá como fugir do acirramento que virou o tal “Fla-Flu político”. Ainda que, em tantas famílias e reuniões de amigos, o confronto esteja mais para Al Ahly x Zamalek, o clássico egípcio que registrou feridos e presos em todas as partidas desta década.

Mas nada é só preto. Nada é só branco. Para além do dualismo infrutífero, surge uma zona cinzenta, na qual estamos todos, escritor e leitor, nossos heróis e vilões. E deve haver, sobretudo, a zona flicts, longe desse matiz intermediário.

Flicts é aquela cor frágil, rara, criada por Ziraldo há meio século para protagonizar o primeiro livro infantil do cartunista que se consagraria com o Menino Maluquinho e a Turma do Pererê. Flicts não conseguia se encaixar em arco-íris, bandeiras, lugar nenhum. A história mostra a saga de uma cor em busca de seu lugar no universo.

Nem só de petralhas é composta a esquerda; a direita vai além dos barulhentos bolsominions. E entre as duas há uma lacuna muito maior do que o centro isentão. Você é flicts.

Para os de exatas, Flicts é a combinação 212,145,38 na escala RGB. Para quem é de humanas mesmo, é um tom pastel, baunilha meio escuro, talvez amarelo-queimado, com um toque de açafrão, um quê de cobre. Cada pai teve uma resposta diferente para o “que cor é essa?” dos baixinhos que não aceitavam flicts enquanto nome de uma tinta, exigindo uma palavra consagrada pela escala Pantone. Flicts é a cor de todos nós, ainda que não a enxerguemos. Que seja o tom de 2017.

Artigo publicado no Correio Braziliense de 2 de janeiro de 2017

6.11.14

Minas vai parar? Conta outra

Não se deixe levar por quem diz que Minas Gerais "vai parar" nos próximos dias, como se o estado mergulhasse numa inércia disposta a acabar só depois de extinta a última faísca da decisão da Copa do Brasil (doravante denominada Copa das Minas Gerais).

Em primeiro lugar, o desajuizado que condena as alterosas à letargia enquanto durar o duelo entre Atlético e Cruzeiro demonstra desconhecimento das Minas Gerais, esse território imaginário que começa no interior de Mato Grosso do Sul para acabar numa praia qualquer entre a Bahia e o Espírito Santo. Em segundo, sabe-se lá se essa faísca um dia há de sumir.

Acusar uma paralisação mineira em pleno ambiente de decisão da Copa das Minas Gerais significa ignorar o comércio de bigodes e perucas, setor que espera um crescimento exponencial até o fim de novembro. Desprezar a venda de camisetas azuis, brancas, pretas, brancas, azuis e brancas, pretas e brancas. Desmerecer a luta por um ingresso que leve às pelejas do Horto e da Pampulha. Desacreditar todo o debate que, porventura, se encerrar num bar em Januária ou em Sete Lagoas.

Minas, locomotiva do futebol brasileiro, capaz de revelar seus Tostões e Reinaldos e redescobrir-se com Willians e Luans, nunca vai parar. Em cada um de seus 853 municípios, há quem acredite, há quem combata; e esses tipos foram exportados até mesmo para terras em que seja impossível encontrar polvilho. E Minas não parou nem quando seus filhos ficaram tão distantes de um ingrediente tão essencial quanto enjeitado do pão-de-queijo.

Novembro de 2014 ficará para a história como o mês em que o polvilho — seja o doce, seja o azedo — ultrapassou as fronteiras das alterosas, fez seu o Brasil e enfim desembarcou em Nova Jérsei. Como se Minas Gerais precisasse de uma prova de força maior do que a de 2013, quando só não tomou conta do mundo por um tropeço do destino e outro de Ronaldinho, filho varão devidamente mandado para descansar no interior do México.

Minas ferve desde ontem, quando descobriu-se sede da Copa das Minas Gerais. Só vai cogitar descansar em dezembro. E nem o pequeno lado verde, se é que restou algum, conseguirá ignorar o que está acontecendo naquele que já foi seu alpendre.

Artigo publicado no Estado de Minas

23.4.13

Onésio e Dolores

Embaralhada pelo Alzheimer, Dolores corrompia as lembranças a cada nascer do sol. Conservou poucas memórias. Essas, de tão reais, revisitava logo ao abrir os olhos. E sorria sempre ao ver Onésio, aquele jovem rapaz da cidade, chegar a cavalo, mais nítido que qualquer reminiscência de 73 anos. E o moço, cortês, não hesitava em retribuir o gesto.

Companheiro diligente, Onésio jamais saía da sela. Tudo pelo bom sorriso de Dolores. Assim, visitava a roça dezenas de vezes por dia e outro punhado à noite. Quando a lua acendia, Dolores pensava naquele homem. Sumira sem ela perceber. Dos rastros e ciumeiras, só mesmo as lembranças. Parada, voltava a enxergá-lo. Sorria.

Conhecia o amado, não pretendia vê-lo enfastiado. Por isso, todas as noites, se revoltava pela primeira vez com o velho corcunda que vinha deitar-se a seu lado. Onésio vai voltar, te matar e me levar junto, anunciava. O senhor saía sorrindo para o sofá, velava de lá a alienação alheia.

Até o momento em que o jovem Onésio realmente voltou. Buscou Dolores pela mão e ela se foi, feliz. O velho ruiu na cama pela primeira vez em tantos anos. Deixou-a somente ao notar que uma jovem de vestido de flanela listrada o convidava para acompanhá-la. Que belo sorriso, pensou.

18.3.13

Vírgulas self-service

Caminho infinito pensamento absoluto desejo sereno saber estúpido desvio súbito medo delicado sinal repentino juízo abafado beijo inocente carinho intenso sorriso óbvio.

19.1.13

Três pedidos

Marluci encontrou uma lâmpada mágica esquecida entre duas seções do sex shop. Vazia, empoeirada e em busca de algum esfregador, as duas. Escondeu-a na bolsa enquanto tentava encomendar mentalmente três pedidos.

Prioridade era um romance à Anastasia Steele, lhe parecia óbvio. O sonhado amor à primeira vista ficaria para a segunda rodada. Ou terceira? Era melhor assegurar logo a independência financeira, quem sabe. As dúvidas afligiram-na, impediram qualquer tentativa de compra.

Como as lingeries lhe travassem o pensamento, Maria Lucilene decidiu deixar o estabelecimento para definir prioridades, lâmpada à tiracolo e cesta de compras vazia.

Foi quando o alerta de furto apitou. Tal dádiva mística custava R$ 69,90. Por esse preço, melhor levar levar calcinha nova, algemas e chibata. E assim ela fez, a lâmpada que se danasse.