Conto para a disciplina Oficina de Interpretação: baseada no estilo de Jack Kerouac, Jenny narra parte da história do filme Forrest Gump (1994) - do qual é personagem, pros desavisados.
1
A discoteca estava lotada tocando um dos hits daquele momento do qual nunca vou me lembrar. A luz vermelha, roxa, rosa, lilás, púrpura. Todos conversando animados, ou assim pareciam estar: gritando que só, buscando ser ouvidos mais do que a própria e a próxima música, todos bebendo; e todos conversando; e todos dançando; e todos flertando; e todos já se paquerando; e todos traçando planos. Minha mesa também estava repleta, seis pessoas numa daquelas mesas que tudo o que você tem é um globo de luz azul para iluminar algo branco é algo fantástico ou pelo menos era o que eu pensava naquela hora enquanto gargalhava tanto com aqueles completos desconhecidos que às vezes me pareciam assim tão comuns pelos seus sorrisos mil. Todos tão educados, me deixando cheirar cocaína ali mesmo, enquanto tagarelavam sobre algum assunto que a música abafava naquele lugar abafado.
Cocaína é uma coisa interessante e naquela hora eu pensei em fazer algo inovador, algo que me permitisse, finalmente, esquecer de todos os meus problemas e me concentrar apenas nas minhas soluções: a rua. Não a rua em si, mas o fato de cair na rua do alto de onde quer que eu estivesse, quão alto eu seria capaz de chegar ainda hoje? Mais tarde no apartamento com aquele mexicano estranho, toda a ideia parecia simplesmente genial quando o efeito todo resolveu passar e me deixar sozinha. Que situação horrenda. Meus olhos pareciam... Não sei o que pareciam, nunca consegui pensar no que pareciam, mas era alguma coisa nojenta, nojenta e preta. Era a hora. Havia uma varanda e a hora era agora, perfeito. Até uma cadeirinha pra eu subir e poder pular mais à vontade. Quantos carros lá embaixo, não deu pra contar. Quando eu começava, eles passavam, eu só via borrões, ficava com medo e tentava me concentrar no que tinha de fazer, mas ah, meu Deus, como era longe o lugar pra onde eu ia, e talvez fosse ainda mais longe que aquele asfalto maldito com mais uns carros passando em alta velocidade por aquele cruzamento perigoso. Quantos andares daria dali? Era mais alto que o prédio da frente. O prédio da frente tinha uns trinta, uns quarenta, tinha uns oitenta fácil, fácil. Era longe e ia doer, por Deus. Maldito salto alto que dói em meu pé, mas lá doeria mais. E os carros continuam, que agonia, mais dois passando, brilhando quase que nem a minha blusa... Deus, quase escorreguei. Não quero morrer. Não agora. Não, não, não, não, tudo errado, tudo. Não tá na hora, olha a lua. Não, não, vou vomitar. Não, não, não, não.
2
E então, eu estava lá. A vida é como uma caixa de chocolates: você nunca sabe o que vai encontrar. Mas quis e realmente encontrei Forrest naquela linda manhã enquanto ele cortava a grama já tão verdinha da casa do Gump. Tudo era branco e verde naquele dia, tudo estava lindo e talvez ele tenha se chocado, porque desligou o carrinho vermelho e veio me ver com um olhar intrigante e luvas nas mãos, apressou o passo e só foi interceptado num – Oi, Forrest – enquanto Forrest não sabia o que dizer, mas bastou um – Oi, Jenny – para fechar toda a situação. Eu estava feliz como não havia estado há muitos anos e corri para abraçá-lo. E estava cansada, Deus como estava cansada. Dormi durante um dia quase inteiro, dormi e dormi como se não tivesse dormido por anos e anos. Talvez por não ter para onde ir, mas era bom estar ali. Todo dia passeávamos pela região e Forrest falava sem parar sobre pingue-pongue; e sobre barcos de camarões; e sobre sua mãe que viajava para o céu; e eu preferia ficar calada e só ouvi-lo. A não ser quando passamos em frente a minha casa, e eu queria atirar lá minha alma, mas só tinha dois sapatos e algumas pedras e isso só seria o suficiente para quebrar a janela, devastante. Eu queria destruir tudo aquilo, mas vi que às vezes a vida não te dá pedras suficientes. Forrest estava do meu lado. Mas não deveria estar, eu queria estar sozinha e destruir toda aquela casa, eu tinha de fazer isso, mas levantar era difícil e eu só queria voltar para casa. A minha casa, não esta casa.
Não acho que Forrest se importava do motivo, mas eu estava de volta. Eu também não entendia o motivo, mas era tudo muito novo, apesar de antigo. Forrest devia pensar que era tudo como nos velhos tempos, que éramos como pão e manteiga outra vez, e todo dia ele colhia novas flores, e bonitas, para colocar no meu quarto. Ah, Forrest, pra ele eu dei um Nike, desses especiais para correr. E ensinei Forrest a dançar na medida do possível, e ali talvez até fôssemos como uma família, eu e Forrest, a época mais feliz da minha vida.
O 4 de julho foi algo estranho. Éramos como um família, eu e Forrest, e então ele me pediu em casamento enquanto eu ia para a cama. Ele parado perto da porta da sala, com o tênis ainda novo em folha e aquela cara que só Forrest era capaz de fazer. Ele daria um bom marido, é claro. – Mas você não quer se casar comigo. – Eu poderia garantir que era ele quem não queria se casar comigo. – Por que você não me ama, Jenny? Eu não sou um homem inteligente, mas eu sei o que é o amor. – Eu sabia daquilo tudo, mas o amor não era mais uma questão de amar e ser feliz. Eu amava, era feliz, tinha percebido. Mas amar não bastava em alguns casos e tudo o que eu queria era sumir daquelas escadas e não ver Forrest se humilhar por alguém que não lhe valia a pena, não importasse o que ele iria me dizer, não importasse o que eu iria dizer a ele. Forrest foi para a porta e eu fui para as escadas, mas como a vida podia ser tão complicada se há algumas horas eu era simplesmente tão feliz? Acabei aquela noite chuvosa no quarto de Forrest: – Forrest, eu te amo, sim. – Nos beijamos ternamente e eu mesma tirei minha bata. Forrest não sabia bem o que fazer, mas, Deus, também eu não sabia o que fazer e acho que queria fazê-lo, mas no fundo... No fundo valeu a pena, pude ver vários anos depois.
Mas no raso, de manhã bem cedo um táxi me esperava, numa manhã tão bela quanto aquela do reencontro. O moço de bigode me lia pelas passadas: – Para onde você está fugindo? – Mas eu não estava fugindo, não do modo como ele pensaria, porque eu fugia um pouco de Forrest e eu fugia de mim.
3
O tênis foi bem útil para Forrest porque ele tinha muito no que pensar, penso eu. Descobri quando vi na tevê que um jardineiro de Greenbow, Alabama, corria há mais de dois anos atravessando os Estados Unidos sem dar motivo algum, e cruzava pela quarta vez o rio Mississipi, e ah, Forrest, eu não poderia acreditar. Só corra, Forrest, corra.
13.12.09
10.12.09
Seu Baltazar, Vittorio De Sica e eu
Uma infecçãozinha de garganta me fez aceitar a intimação de mamãe e vir passar o fim de semana em Unaí - tomando por fim de semana o período entre quarta-feira e domingo. Fazia quase um mês que eu não vinha pra cá. Mas aquilo que seria um preview das férias tem sido interessante.
Lembro bem do nó na garganta logo em que cheguei na cidade, quarta à tarde. Não havia sombra das luzes de Natal! E não tinha movimento natalino, em pleno dia 9. Sinal de que a cidade cresceu e não acredita mais em Papai Noel. Eu seguia lembrando da infância comendo panetone, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 24. Ou o lombo trançado que mamãe fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 23. Ou o sorvete de panetone que dindinha fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 22. Eu sentia o gosto daquilo enquanto acelerava pra continuar na avenida e entregar pra coleção da vovó um frila que peguei pro Jornal de Brasília. Eu cresci, a cidade cresceu, mas a vovó ainda tá lá, firme nos seus poucos metros quadrados em que as clientes também não crescem, me chamam por nome e dizem como eu cresci.
O dia 10 foi mais incisivo. Unir três pontos cruciais da vida em uma só cena é coisa cinematográfica, fantástica. Ali estavam uma criancinha, um jovem ambicioso e... bem, o que estou virando, seja lá o que for. Algo meio Ieri, Oggi, Domani, aquele do Vittorio De Sica. Tirando o ponto de que nenhum dos meus três personagens é uma prostituta, juro. Tudo isso quando, enquanto caminhava avoado ouvindo Ligabue, vi o seu Baltazar.
Quem caminhava era um misto daquele que sou, com aquele que estou virando, com aquele que quero ser. Essas caminhadas que sempre me prometo e nem sempre executo, mas que dessa vez topei fazer depois de uma boa tempestade na cidade. Um reflexo da maturidade que chega com suas doenças e o monte de coisas que me convence a fazer algum exercício físico. Quem ouvia Ligabue era um um jovenzinho ambicioso, que com a música estava finalmente estava aprendendo italiano direito e sozinho, pela primeira vez (sozinho) pensava em fazer jornalismo, finalmente entendia (direito) futebol e implorava por sair dessa cidade de onde agora escreve. A criancinha dá uma história à parte. Adoro a criancinha. E adoro seu Baltazar.
Na memória mais antiga que tenho dos dois juntos, um pirralho ainda meio loirinho no baixo de seus seis anos disparava pelas escadas pra encontrar aquele senhor amável, com um Pralana caramelo desgastado na cabeça. O interfone do prédio estava estragado. Papai havia acabado de ligar avisando que seu Baltazar estava lá embaixo esperando. Seu Baltazar foi um dos ícones da minha infância. Fazia o melhor requeijão da cidade. Ou da cidade que eu tinha aos seis anos. E, o mais importante de tudo, naquele dia seu Baltazar havia guardado as rapas pra mim pela primeira vez. Rapa é uma coisa meio escura que fica no tacho quando se faz o requeijão - e mais gostosa que o próprio. Rapa é coisa boa, acredite. Enquanto morei ali, por nove anos, seu Baltazar sempre levou requeijão. E guardava minha rapa, sempre, num potinho de Doriana. E hoje eu nem sei mais se Doriana ainda existe.
Pois seu Baltazar sumiu depois que fui pro outro lado da cidade. Há uns três anos, papai disse que "o velho morreu". Foi um dia triste. Papai não costuma fazer rodeios para calar a boca de quem o atrapalha a assistir o jornal na TV e provavelmente nem sabia de quem eu perguntava. Feliz foi hoje, enquanto Ligabue cantava que os sonhos são todos grátis, ainda que quase todos já estejam usados. Na Cinecittà, De Sica poderia ter eternizado um velhinho que empurrava sua Monark azul de uma década atrás e cumprimentava um garoto que, aos poucos, avançaria num êxtase silencioso enquanto o senhor se distanciava com um potinho de Doriana em sua garupa. Um ladrão da bicicleta mais importante de uma infância.
Lembro bem do nó na garganta logo em que cheguei na cidade, quarta à tarde. Não havia sombra das luzes de Natal! E não tinha movimento natalino, em pleno dia 9. Sinal de que a cidade cresceu e não acredita mais em Papai Noel. Eu seguia lembrando da infância comendo panetone, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 24. Ou o lombo trançado que mamãe fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 23. Ou o sorvete de panetone que dindinha fazia, na lojinha da vovó, perto da meia-noite do dia 22. Eu sentia o gosto daquilo enquanto acelerava pra continuar na avenida e entregar pra coleção da vovó um frila que peguei pro Jornal de Brasília. Eu cresci, a cidade cresceu, mas a vovó ainda tá lá, firme nos seus poucos metros quadrados em que as clientes também não crescem, me chamam por nome e dizem como eu cresci.
O dia 10 foi mais incisivo. Unir três pontos cruciais da vida em uma só cena é coisa cinematográfica, fantástica. Ali estavam uma criancinha, um jovem ambicioso e... bem, o que estou virando, seja lá o que for. Algo meio Ieri, Oggi, Domani, aquele do Vittorio De Sica. Tirando o ponto de que nenhum dos meus três personagens é uma prostituta, juro. Tudo isso quando, enquanto caminhava avoado ouvindo Ligabue, vi o seu Baltazar.
Quem caminhava era um misto daquele que sou, com aquele que estou virando, com aquele que quero ser. Essas caminhadas que sempre me prometo e nem sempre executo, mas que dessa vez topei fazer depois de uma boa tempestade na cidade. Um reflexo da maturidade que chega com suas doenças e o monte de coisas que me convence a fazer algum exercício físico. Quem ouvia Ligabue era um um jovenzinho ambicioso, que com a música estava finalmente estava aprendendo italiano direito e sozinho, pela primeira vez (sozinho) pensava em fazer jornalismo, finalmente entendia (direito) futebol e implorava por sair dessa cidade de onde agora escreve. A criancinha dá uma história à parte. Adoro a criancinha. E adoro seu Baltazar.
Na memória mais antiga que tenho dos dois juntos, um pirralho ainda meio loirinho no baixo de seus seis anos disparava pelas escadas pra encontrar aquele senhor amável, com um Pralana caramelo desgastado na cabeça. O interfone do prédio estava estragado. Papai havia acabado de ligar avisando que seu Baltazar estava lá embaixo esperando. Seu Baltazar foi um dos ícones da minha infância. Fazia o melhor requeijão da cidade. Ou da cidade que eu tinha aos seis anos. E, o mais importante de tudo, naquele dia seu Baltazar havia guardado as rapas pra mim pela primeira vez. Rapa é uma coisa meio escura que fica no tacho quando se faz o requeijão - e mais gostosa que o próprio. Rapa é coisa boa, acredite. Enquanto morei ali, por nove anos, seu Baltazar sempre levou requeijão. E guardava minha rapa, sempre, num potinho de Doriana. E hoje eu nem sei mais se Doriana ainda existe.
Pois seu Baltazar sumiu depois que fui pro outro lado da cidade. Há uns três anos, papai disse que "o velho morreu". Foi um dia triste. Papai não costuma fazer rodeios para calar a boca de quem o atrapalha a assistir o jornal na TV e provavelmente nem sabia de quem eu perguntava. Feliz foi hoje, enquanto Ligabue cantava que os sonhos são todos grátis, ainda que quase todos já estejam usados. Na Cinecittà, De Sica poderia ter eternizado um velhinho que empurrava sua Monark azul de uma década atrás e cumprimentava um garoto que, aos poucos, avançaria num êxtase silencioso enquanto o senhor se distanciava com um potinho de Doriana em sua garupa. Um ladrão da bicicleta mais importante de uma infância.
5.7.09
The book is on the table
Jacek não sabia muita coisa, já no alto de seus trinta anos. Sabia onde achar a casa, o banco e a praça, dizer seu sobrenome, explicar a diferença entre verbos perfectivos e imperfectivos, declinar as palavras corretamente. Maria e Jacek se completavam. Ela sabia chegar ao aeroporto, chamar um táxi, fazer uma ligação e pedir algo num restaurante indo-polonês.
John era feliz com Alice. Tudo bem que os dois tinham apenas doze anos, cada. Mas ele sabia reconhecer todos os animais, possuía todos os adjetivos na ponta da língua e sabia o que ia ser quando crescesse. Ela tinha um extenso vocabulário geopolítico, reconhecia culturas ao redor do mundo e nunca errava as horas. Um futuro promissor para o casal de já-namorados.
Marco e Ilaria tinham muitas preocupações em suas vidas de jovens universitários, como descrever todos os pontos turísticos de Roma, os principais eventos de Milão, a temperatura de Turim e a história de Gênova. Todos o conheciam por ser o mais popular entre os seus. Todos a conheciam por ser a mais bela entre as suas.
Os seis se encontraram com Ricardo e Aline, certa feita. Estes não eram lá muito legais, apesar de sempre dizerem isso um para o outro. Eram difíceis de agradar: só falavam sobre carnaval, praias, samba e televisão. E pelo jeito não tinham muita ambição, o que era surpreendentemente comum aos outros.
Todos se entreolhavam impassíveis, sem saber o que fazer, o que pensar, o que dizer, para onde correr. Nazywam się Jacek, o polonês se adiantou. Maria sorriu e disse Maria, enquanto italianos e brasileiros riam daquele modo estranho e anasalado de se dizer Maria. Depois Aline lhe estendeu a mão, mas Maria evitou o contato com a desconhecida. Ricardo abraçou Marco, mas tentou fugir quando aquele carcamano de merda tentou lhe acertar um beijo na testa.
John observava a cena meio que consternado, pensando o quão nonsense era toda aquela situação, com vários adultos se estranhando de um jeito algo contemplativo. Porém não tardou a descobrir que o problema não era exatamente com eles. E que também não era possível fazer uma história que fizesse sentido tirando os personagens dos lugares de onde vieram.
John era feliz com Alice. Tudo bem que os dois tinham apenas doze anos, cada. Mas ele sabia reconhecer todos os animais, possuía todos os adjetivos na ponta da língua e sabia o que ia ser quando crescesse. Ela tinha um extenso vocabulário geopolítico, reconhecia culturas ao redor do mundo e nunca errava as horas. Um futuro promissor para o casal de já-namorados.
Marco e Ilaria tinham muitas preocupações em suas vidas de jovens universitários, como descrever todos os pontos turísticos de Roma, os principais eventos de Milão, a temperatura de Turim e a história de Gênova. Todos o conheciam por ser o mais popular entre os seus. Todos a conheciam por ser a mais bela entre as suas.
Os seis se encontraram com Ricardo e Aline, certa feita. Estes não eram lá muito legais, apesar de sempre dizerem isso um para o outro. Eram difíceis de agradar: só falavam sobre carnaval, praias, samba e televisão. E pelo jeito não tinham muita ambição, o que era surpreendentemente comum aos outros.
Todos se entreolhavam impassíveis, sem saber o que fazer, o que pensar, o que dizer, para onde correr. Nazywam się Jacek, o polonês se adiantou. Maria sorriu e disse Maria, enquanto italianos e brasileiros riam daquele modo estranho e anasalado de se dizer Maria. Depois Aline lhe estendeu a mão, mas Maria evitou o contato com a desconhecida. Ricardo abraçou Marco, mas tentou fugir quando aquele carcamano de merda tentou lhe acertar um beijo na testa.
John observava a cena meio que consternado, pensando o quão nonsense era toda aquela situação, com vários adultos se estranhando de um jeito algo contemplativo. Porém não tardou a descobrir que o problema não era exatamente com eles. E que também não era possível fazer uma história que fizesse sentido tirando os personagens dos lugares de onde vieram.
12.5.09
Erro de cálculo
Cinco e quinze e os vigilantes já estavam acordados. Batia fraco o ritmo da noite. Depois de mais um dia de trabalho, o movimento na cidade tinha acabado de cessar e o sol estava prestes a nascer para marcar o fim da rotina daquela quarta-feira. Quando mandou a geladeira lhe dar um refrigerante, Luana ouviu o âncora que lhe lembrava que amanhã era o grande dia. O mundo finalmente ia acabar, segundo as profecias maias.
E acabar assim tão cedo, suspirou enquanto confirmava a programação da casa antes de se deitar. Em pleno século XXIX, que absurdo é alguma coisa acabar com o mundo. Ainda mais com o que todos os países gastavam com segurança nacional e evolução científica. A terra ia tremer por algum motivo inexplicável aos leigos, a água ia tomar conta do que ainda não tinha tomado e todos os dois bilhões de habitantes do planeta seriam dizimados.
O mundo ia acabar e ela só tinha 22 anos. Não tinha nem comprado seu carro. A vida tinha sido dura desde que seus pais morreram, mas justo no momento em que havia conseguido se equilibrar, os maias iam destruir os vivos. Era recalque porque tinham sido destruídos, ela estava certa. Não contentes com a própria morte, resolveram então matar quem quer que nascesse dois milênios depois.
Os lingüistas e os tradutores e os arqueólogos e os paleontólogos haviam passado um bom tempo para interpretar a mensagem maia. Aqueles índios peruanos já haviam tentado destruir o mundo mais três vezes, mas sempre tinha sido só um desastrezinho qualquer. Mas toda essa turma garantia que dessa vez o planeta convergia mesmo para que a profecia se cumprisse. Em 2012, do nada a chuva começou e precisou de três dias para matar quase um bilhão de pessoas.
Bem que podia ser assim de novo. Um bilhão, cinqüenta milhões só no Brasil, não era nada. Na época o mundo tinha muita gente e, não fosse a chuva, não deveria durar por muito tempo mesmo. Outro bilhão desse cortaria metade da população de hoje, mas um por um era um risco que valia a pena. E chorava enquanto Letícia tentava confortá-la de que era algo bobo e que as duas continuariam felizes para criarem juntas o filho que viria no próximo mês.
Já passava das oito horas quando Luana finalmente conseguiu pegar no sono, enquanto o sol queimava do lado de fora. Pouco depois a terra tremeu. Do apartamento ao lado vinha a gritaria de um pastor gritando que Jesus ama a todos e a felicidade ia finalmente chegar. Engraçado a religião voltar à moda nos momentos mais difíceis. Jesus agora ama a todos. Talvez Deus então não ame. A terra continuava tremendo e Jesus ainda amava quando tudo parou e se tranqüilizou, sem grandes perdas e com as pessoas intocadas.
Mal pensavam que todos os especialistas podiam errar suas contas em pleno 2876. E na sexta-feira dois bilhões de pessoas se foram.
E acabar assim tão cedo, suspirou enquanto confirmava a programação da casa antes de se deitar. Em pleno século XXIX, que absurdo é alguma coisa acabar com o mundo. Ainda mais com o que todos os países gastavam com segurança nacional e evolução científica. A terra ia tremer por algum motivo inexplicável aos leigos, a água ia tomar conta do que ainda não tinha tomado e todos os dois bilhões de habitantes do planeta seriam dizimados.
O mundo ia acabar e ela só tinha 22 anos. Não tinha nem comprado seu carro. A vida tinha sido dura desde que seus pais morreram, mas justo no momento em que havia conseguido se equilibrar, os maias iam destruir os vivos. Era recalque porque tinham sido destruídos, ela estava certa. Não contentes com a própria morte, resolveram então matar quem quer que nascesse dois milênios depois.
Os lingüistas e os tradutores e os arqueólogos e os paleontólogos haviam passado um bom tempo para interpretar a mensagem maia. Aqueles índios peruanos já haviam tentado destruir o mundo mais três vezes, mas sempre tinha sido só um desastrezinho qualquer. Mas toda essa turma garantia que dessa vez o planeta convergia mesmo para que a profecia se cumprisse. Em 2012, do nada a chuva começou e precisou de três dias para matar quase um bilhão de pessoas.
Bem que podia ser assim de novo. Um bilhão, cinqüenta milhões só no Brasil, não era nada. Na época o mundo tinha muita gente e, não fosse a chuva, não deveria durar por muito tempo mesmo. Outro bilhão desse cortaria metade da população de hoje, mas um por um era um risco que valia a pena. E chorava enquanto Letícia tentava confortá-la de que era algo bobo e que as duas continuariam felizes para criarem juntas o filho que viria no próximo mês.
Já passava das oito horas quando Luana finalmente conseguiu pegar no sono, enquanto o sol queimava do lado de fora. Pouco depois a terra tremeu. Do apartamento ao lado vinha a gritaria de um pastor gritando que Jesus ama a todos e a felicidade ia finalmente chegar. Engraçado a religião voltar à moda nos momentos mais difíceis. Jesus agora ama a todos. Talvez Deus então não ame. A terra continuava tremendo e Jesus ainda amava quando tudo parou e se tranqüilizou, sem grandes perdas e com as pessoas intocadas.
Mal pensavam que todos os especialistas podiam errar suas contas em pleno 2876. E na sexta-feira dois bilhões de pessoas se foram.
Pique-esconde
Quatro mil quatrocentos e noventa e sete. Quatro mil quatrocentos e noventa e oito. Quatro mil quatrocentos e noventa e nove. Cinco mil. Ítalo respirou fundo e lá vou eu. E lá foi ele olhar em volta e ver tudo o que tinha à sua volta. Voltar os olhos para o nada, encontrando tudo o que via e sem saber quando parar. Ítalo estava sozinho, cinco mil vezes depois de não ver todos saírem correndo. Não sabia onde procurar. E o pique era seu.
O pique era seu. Afinal, foi a onça quem lhe deu. Quem saísse do pique estava pego, mas a cidade era grande demais para uma brincadeira de criança. A parede na qual fizera o tempo passar era seu reduto e agora só a ela se resumia sua cidade. Quando Ítalo deu as costas para que os outros fugissem em paz, viu que isso a onça não tinha planejado. E a cidade não era sua.
Um bêbado tropeçava nas próprias pernas sem fazer cair a garrafa. Um bebê chorava sob o sol enquanto sua mãe clamava por moedas. Uma estátua agradecia os passantes pelas moedas recebidas. Não, não era isso que procurava. Um carro atropelava um garoto que fugia desabalado de uma senhora que gritava a polícia que só queria multar o motorista. Mas não era isso que tinha se escondido.
Não conseguia focar no que tinha deixado para trás ao virar as costas e deixar deixarem-no para trás. Quando resolveu contar sem fazer as contas do que iria perder, não sabia olhar para si. Olhar por cima e, ainda correndo sob o sol fustigante da cidade em busca dos desaparecidos, entrar naquela sala escura onde um corpo descansava entre o choro seco de três carpideiras. Foi quando finalmente se encontrou imóvel para sempre e percebeu que todo esse tempo estava buscando quem nunca tinha lhe encontrado.
O pique era seu. Afinal, foi a onça quem lhe deu. Quem saísse do pique estava pego, mas a cidade era grande demais para uma brincadeira de criança. A parede na qual fizera o tempo passar era seu reduto e agora só a ela se resumia sua cidade. Quando Ítalo deu as costas para que os outros fugissem em paz, viu que isso a onça não tinha planejado. E a cidade não era sua.
Um bêbado tropeçava nas próprias pernas sem fazer cair a garrafa. Um bebê chorava sob o sol enquanto sua mãe clamava por moedas. Uma estátua agradecia os passantes pelas moedas recebidas. Não, não era isso que procurava. Um carro atropelava um garoto que fugia desabalado de uma senhora que gritava a polícia que só queria multar o motorista. Mas não era isso que tinha se escondido.
Não conseguia focar no que tinha deixado para trás ao virar as costas e deixar deixarem-no para trás. Quando resolveu contar sem fazer as contas do que iria perder, não sabia olhar para si. Olhar por cima e, ainda correndo sob o sol fustigante da cidade em busca dos desaparecidos, entrar naquela sala escura onde um corpo descansava entre o choro seco de três carpideiras. Foi quando finalmente se encontrou imóvel para sempre e percebeu que todo esse tempo estava buscando quem nunca tinha lhe encontrado.
5.5.09
Título bom é pros fracos
Puto. Ele tava puto. Muito puto. Nem era muito, mas naquela hora bem que tava. Puto. Mas puto pra caralho. Aquela maldita gostava mesmo era de atrapalhar sua vida. Não lhe conhecia nenhum pouco. Ele suspeitava disso, mas era tarde demais. Tinha escolhido aquilo e agora o orgulho o segurava no bonde. E como isso o deixava puto. Não tinha opção. E mesmo que tivesse agora no desespero, na hora certa não teria opção.
A opção tinha fugido e agora estava longe. Bem que estava perto, mas estava bem além. Sempre estava perto, mas nunca tinha estado tão longe. E isso o deixava puto. Um leão intratável não estaria tão puto. Puto com tudo. Tudo puto com ele e isso o deixava puto. Mas confuso. E puto. Mais confuso.
É fácil fazer escolhas e ainda mais fácil é conviver com elas. Incômodo mesmo é conviver com as escolhas que foram deixadas de lado. Se não haviam sido escolhidas, por que é que ainda estavam lá? Tinham sido negadas meio a contragosto. E por contragosto mesmo é que a negação se fazia tão forte. Se não dava pra negar, não dava pra perder. Simplesmente não queria negar. Tampouco aceitava perder. E isso o deixava puto. Mas não com tudo. Consigo e só. E muito só. Contudo, não só com isso. Mas só. Na hora de respirar fundo, não havia outra opção para continuar sendo humano. Respirar fundo e só. Ainda só. Sempre só.
O inconformismo era o cimento da melancolia. O que importava era que os outros intuíssem que ele estava puto, ainda que não estivesse para si, ainda que não ainda para todos, ainda que ainda não houvesse nada para que ela fizesse. Talvez tudo ficasse bem. Provavelmente não. Mas os dois já se acostumaram a manter sua terra girando mesmo enquanto esperavam-na parar. E não era dessa vez que algo mudaria.
A opção tinha fugido e agora estava longe. Bem que estava perto, mas estava bem além. Sempre estava perto, mas nunca tinha estado tão longe. E isso o deixava puto. Um leão intratável não estaria tão puto. Puto com tudo. Tudo puto com ele e isso o deixava puto. Mas confuso. E puto. Mais confuso.
É fácil fazer escolhas e ainda mais fácil é conviver com elas. Incômodo mesmo é conviver com as escolhas que foram deixadas de lado. Se não haviam sido escolhidas, por que é que ainda estavam lá? Tinham sido negadas meio a contragosto. E por contragosto mesmo é que a negação se fazia tão forte. Se não dava pra negar, não dava pra perder. Simplesmente não queria negar. Tampouco aceitava perder. E isso o deixava puto. Mas não com tudo. Consigo e só. E muito só. Contudo, não só com isso. Mas só. Na hora de respirar fundo, não havia outra opção para continuar sendo humano. Respirar fundo e só. Ainda só. Sempre só.
O inconformismo era o cimento da melancolia. O que importava era que os outros intuíssem que ele estava puto, ainda que não estivesse para si, ainda que não ainda para todos, ainda que ainda não houvesse nada para que ela fizesse. Talvez tudo ficasse bem. Provavelmente não. Mas os dois já se acostumaram a manter sua terra girando mesmo enquanto esperavam-na parar. E não era dessa vez que algo mudaria.
4.5.09
O todo é história
No fim do século XIX, ao mesmo tempo em que um norte-americano qualquer deixava seu país rumo à Espanha, em Lisboa um garotinho de doze anos arrumava sua trouxa de roupas para se engajar como ajudante de cozinha num dos veleiros que partiriam para o Brasil. Os dois nunca se conheceram.
O que importa é que o veleiro demoraria mais de um mês para chegar ao Rio de Janeiro. O suficiente para o americano alcançar Talavera de La Reina, vilarejo no qual ninguém falava inglês, mas não media esforços para fazer as vontades do gringo e de seu dinheiro, que insistiam: “I like to go on Tijo”. O condutor do tílburi custou, mas entendeu e gastou as rodas e as patas do cavalo até levá-lo ao rio Tejo, que banha a cidade. Emocionado por ver o rio do qual seu pai tanto falava, não parava de chorar e repetir que gostava “so much go on Tijo”. O carroceiro guardou aquela pronúncia fanha na memória e, na semana seguinte, pediu à filha que batizasse sua primeira neta com o nome de America Gontijo, para homenagear o gringo.
Enquanto a pequena espanhola nascia, António Moreira chegava ao Rio para trabalhar no comércio de um amigo de seu pai, no alto de seus doze anos. Não precisou de muito tempo para arrumar confusão com aquele homem enérgico e fugir para o interior do país. Gastou anos, mas conseguiu emprego como caseiro numa fazenda na região do rio Abaeté. E mais alguns anos até ganhar a confiança da família e ser digno da função de capataz e da mão de uma das sobrinhas do fazendeiro.
O casamento do Moreira gastou mais de ano para virar realidade, mas de boca a boca sua festa já causava alvoroço em toda a região do Abaeté. Tumulto maior só vivia a região de Castela, no auge da Guerra Civil Espanhola. America Gontijo foi uma das que deixou seu país às pressas e não teve muita opção além de pegar o primeiro navio para o continente que lhe dera o nome e desembarcar no Brasil.
As duas histórias foram unidas pelo destino ou por algo ainda mais etéreo quando a matriarca resolveu que a porção dos Gontijo no Brasil tentaria a sorte nas Minas Gerais, publicamente já sem ouro, mas agora com tanto gado, soja e café. O primeiro resultado do casamento do Moreira foi um espirituoso José Olímpio. E das desventuras da America espanhola pela América já brasileira, o último fruto foi Porcelina. Mal poderiam sonhar que setenta anos depois as duas famílias se uniriam no noroeste do estado para juntar um nome alemão a essa história interminável.
O que importa é que o veleiro demoraria mais de um mês para chegar ao Rio de Janeiro. O suficiente para o americano alcançar Talavera de La Reina, vilarejo no qual ninguém falava inglês, mas não media esforços para fazer as vontades do gringo e de seu dinheiro, que insistiam: “I like to go on Tijo”. O condutor do tílburi custou, mas entendeu e gastou as rodas e as patas do cavalo até levá-lo ao rio Tejo, que banha a cidade. Emocionado por ver o rio do qual seu pai tanto falava, não parava de chorar e repetir que gostava “so much go on Tijo”. O carroceiro guardou aquela pronúncia fanha na memória e, na semana seguinte, pediu à filha que batizasse sua primeira neta com o nome de America Gontijo, para homenagear o gringo.
Enquanto a pequena espanhola nascia, António Moreira chegava ao Rio para trabalhar no comércio de um amigo de seu pai, no alto de seus doze anos. Não precisou de muito tempo para arrumar confusão com aquele homem enérgico e fugir para o interior do país. Gastou anos, mas conseguiu emprego como caseiro numa fazenda na região do rio Abaeté. E mais alguns anos até ganhar a confiança da família e ser digno da função de capataz e da mão de uma das sobrinhas do fazendeiro.
O casamento do Moreira gastou mais de ano para virar realidade, mas de boca a boca sua festa já causava alvoroço em toda a região do Abaeté. Tumulto maior só vivia a região de Castela, no auge da Guerra Civil Espanhola. America Gontijo foi uma das que deixou seu país às pressas e não teve muita opção além de pegar o primeiro navio para o continente que lhe dera o nome e desembarcar no Brasil.
As duas histórias foram unidas pelo destino ou por algo ainda mais etéreo quando a matriarca resolveu que a porção dos Gontijo no Brasil tentaria a sorte nas Minas Gerais, publicamente já sem ouro, mas agora com tanto gado, soja e café. O primeiro resultado do casamento do Moreira foi um espirituoso José Olímpio. E das desventuras da America espanhola pela América já brasileira, o último fruto foi Porcelina. Mal poderiam sonhar que setenta anos depois as duas famílias se uniriam no noroeste do estado para juntar um nome alemão a essa história interminável.
28.4.09
Dou-lhe uma, dou-lhe duas
Tudo bem que é indie assistir leilão de gado no Canal do Boi. Todo aquele calafrio para saber se a fêmea que o leiloeiro apresenta está preparada para inseminação artificial, qual a parcela mínima e o prazo, quem são as matrizes, qual o nível do registro... Ah, como é bom fazer carão e desprezar quem acha que vai arrematar aquele monstruoso filho do Fajardo, um PO legítimo, por apenas 36 parcelas de três mil e quinhentos reais.
Indie mesmo é ir ao tatersal e assistir um leilão dando os lances pessoalmente, não sem antes verificar cada um dos lotes nos currais e depois churrascar com o leiloeiro numa roda de viola. Pois papai é indie. E tem programa para todas as noites de terças e quintas: um bom leilão de gado, mesmo em período de seca.
Papai diz que a diferença entre assistir em casa e pessoalmente é a mesma entre futebol no estádio e no sofá. Eu é que não vou discordar. A infância alternando a marcação das cotações com goles de Fanta Uva não me permite pensar outra coisa. No futebol as torcidas brigam fora do estádio. No leilão roubaram a caminhonete do papai.
Uma coisa é roubar algo de alguém em algum lugar qualquer. Outra é roubar a caminhonete do papai em seu segundo lar. Ele sabia disso. E boa parte do tatersal também. Quando papai teve de ir embora mais cedo e o estacionamento tinha uma F250 a menos, não foi preciso mais de quinze minutos para que o leilão virasse feira e pelo menos dez outras caminhonetes saíssem cantando pneu em busca da de papai. Porque papai, tatersalmente falando, é homem de respeito. E, em Minas, com homem de respeito não se mexe.
A polícia de Unaí costuma comentar que é praticamente impossível encontrar alguém que fuja em direção à zona rural da cidade. O labirinto de estradas dentro das fazendas torna a missão quase impossível para as viaturas. O caso é que descobri que falta sangue nos olhos da polícia. Porque a partir do momento em que a possante Nissan do dono do tatersal entrou na busca, não foi preciso mais de trinta minutos para que os celulares começassem a tocar e todos partirem para o mesmo lugar.
Se estavam acostumados em festa na Tucaneiros, o host do dia era papai. O ladrão, pobre diabo, tinha parado para pensar em uma fuga, mas ainda estava em sua área. Pior de tudo, sozinho. E papai nem precisou estar armado para tirar aquela sujeira de dentro da sua caminhonete e, dou-lhe uma, dou-lhe duas, convencê-lo de uma forma nada blasé de que seria melhor ele nunca mais voltasse a pisar em Unaí. Afinal, não é o fato de papai ser indie que tira o poder de suas ofertas irrecusáveis.
Indie mesmo é ir ao tatersal e assistir um leilão dando os lances pessoalmente, não sem antes verificar cada um dos lotes nos currais e depois churrascar com o leiloeiro numa roda de viola. Pois papai é indie. E tem programa para todas as noites de terças e quintas: um bom leilão de gado, mesmo em período de seca.
Papai diz que a diferença entre assistir em casa e pessoalmente é a mesma entre futebol no estádio e no sofá. Eu é que não vou discordar. A infância alternando a marcação das cotações com goles de Fanta Uva não me permite pensar outra coisa. No futebol as torcidas brigam fora do estádio. No leilão roubaram a caminhonete do papai.
Uma coisa é roubar algo de alguém em algum lugar qualquer. Outra é roubar a caminhonete do papai em seu segundo lar. Ele sabia disso. E boa parte do tatersal também. Quando papai teve de ir embora mais cedo e o estacionamento tinha uma F250 a menos, não foi preciso mais de quinze minutos para que o leilão virasse feira e pelo menos dez outras caminhonetes saíssem cantando pneu em busca da de papai. Porque papai, tatersalmente falando, é homem de respeito. E, em Minas, com homem de respeito não se mexe.
A polícia de Unaí costuma comentar que é praticamente impossível encontrar alguém que fuja em direção à zona rural da cidade. O labirinto de estradas dentro das fazendas torna a missão quase impossível para as viaturas. O caso é que descobri que falta sangue nos olhos da polícia. Porque a partir do momento em que a possante Nissan do dono do tatersal entrou na busca, não foi preciso mais de trinta minutos para que os celulares começassem a tocar e todos partirem para o mesmo lugar.
Se estavam acostumados em festa na Tucaneiros, o host do dia era papai. O ladrão, pobre diabo, tinha parado para pensar em uma fuga, mas ainda estava em sua área. Pior de tudo, sozinho. E papai nem precisou estar armado para tirar aquela sujeira de dentro da sua caminhonete e, dou-lhe uma, dou-lhe duas, convencê-lo de uma forma nada blasé de que seria melhor ele nunca mais voltasse a pisar em Unaí. Afinal, não é o fato de papai ser indie que tira o poder de suas ofertas irrecusáveis.
22.4.09
Pamonha!
Lembro-me como se fosse amanhã quando a família se reuniu na casa de vovó num dia qualquer de 1992 para aproveitar a temporada de milho e unir todos os credos daquele pessoal em torno de uma só razão: a pamonha. O puro creme do milho verde. Quente, fresco e caseiro. E com gosto da tardinha de sexta-feira correndo no alpendre da casa de vovó. Afinal, nada mais mineiro que família grande, adultos fazendo pamonha, crianças correndo no alpendre e uma ou outra com aquela tal de idéia de jerico pra tentar implodir todo o plano-sequência planejado pela vovó.
Pois, naquele dia fatídico, deixei de lado minha missão narrativa para me concentrar em um confronto individual com o Lucas. Ele pisou no meu pé. Eu chutei o joelho dele. Que puxou meu cabelo. E teve sua orelha mordida. E se aproveitou disso pra tentar me enforcar e conseguir pelo menos sufocar meu grito por qualquer uma das mulheres da família que nem estavam assim tão longe mas ainda assim não ouviam nada. Mas ufa. A bandeira branca da trégua valia pela batalha, não pela guerra.
Porque toda criança de dois ou três anos sabe que a verdadeira guerra é pela atenção dos adultos. A relação entre os outros pirralhos não importa muito se a vovó corre pra acudir pouco antes da panela de água fervente cair em cima de você. E para recuperar o terreno provando a superioridade, a carta na manga era melhor que um Coringa qualquer: o Batman.
E enquanto as mulheres separavam e empilhavam e enchiam e amarravam e ferviam as palhas cheias daquele creme de milho, o espírito de super-herói fez nosso pequeno anti-herói se desvencilhar do Lucas e pular no sofá para alcançar aquela janela que, vista do alpendre, era maior do que qualquer um dos tios da família. Do alto daqueles dois metros, uns cabelinhos meio loiros gritaram "Eu sou o Batman!" ao mesmo tempo em que o vento os consumia e mamãe e vovó só não corriam em sua direção mais rápido do que o próprio piso do alpendre.
Papai garantiu que o protótipo de Batman era mais pamonha do que o milho que cozinhava na panela em mais uma das sextas-feiras quaisquer de colheita. Com razão. Só no filme de 2005 é que resolveram fazer com que o Bruce Wayne voasse. Até lá, a queda era garantida. Esperta era mamãe, que aconselhou seu pequeno a se identificar como Clark Kent no próximo salto.
Pois, naquele dia fatídico, deixei de lado minha missão narrativa para me concentrar em um confronto individual com o Lucas. Ele pisou no meu pé. Eu chutei o joelho dele. Que puxou meu cabelo. E teve sua orelha mordida. E se aproveitou disso pra tentar me enforcar e conseguir pelo menos sufocar meu grito por qualquer uma das mulheres da família que nem estavam assim tão longe mas ainda assim não ouviam nada. Mas ufa. A bandeira branca da trégua valia pela batalha, não pela guerra.
Porque toda criança de dois ou três anos sabe que a verdadeira guerra é pela atenção dos adultos. A relação entre os outros pirralhos não importa muito se a vovó corre pra acudir pouco antes da panela de água fervente cair em cima de você. E para recuperar o terreno provando a superioridade, a carta na manga era melhor que um Coringa qualquer: o Batman.
E enquanto as mulheres separavam e empilhavam e enchiam e amarravam e ferviam as palhas cheias daquele creme de milho, o espírito de super-herói fez nosso pequeno anti-herói se desvencilhar do Lucas e pular no sofá para alcançar aquela janela que, vista do alpendre, era maior do que qualquer um dos tios da família. Do alto daqueles dois metros, uns cabelinhos meio loiros gritaram "Eu sou o Batman!" ao mesmo tempo em que o vento os consumia e mamãe e vovó só não corriam em sua direção mais rápido do que o próprio piso do alpendre.
Papai garantiu que o protótipo de Batman era mais pamonha do que o milho que cozinhava na panela em mais uma das sextas-feiras quaisquer de colheita. Com razão. Só no filme de 2005 é que resolveram fazer com que o Bruce Wayne voasse. Até lá, a queda era garantida. Esperta era mamãe, que aconselhou seu pequeno a se identificar como Clark Kent no próximo salto.
18.4.09
A verdadeira Brasília
Brasília é uma capital triste. Cidade de tanta gente só. De obviedade derramada no semiárido.
Passava pouco das dez da noite, quando decidi por um sanduíche para alimentar o sábado. Numa comercial não muito movimentada da Asa Norte, todas as seis mesas estavam ocupadas. Três por pessoas sozinhas e três por mais de uma pessoa desacompanhada. Solteiras ou não, solitárias. Porque Brasília é uma cidade estranha, veja bem. Teve as chances de ser um ode à sociabilidade, graças à imigração interminável e impiedosa que ainda lhe lota. Ilusão.
Tem propriedade para falar disso quem provou sua independência atravessando um dia sete com quarenta graus sobre os lençóis e por cinco dias seguidos vomitou a alma junto de seu ego. Porque o ego é a melhor fuga para pessoas solitárias, por se basear no orgulho próprio e em tentativas de encontrar a si mesmo na admiração alheia: a felicidade é secundária quando a sociedade aprova a tristeza. A mesma sociedade utópica criada por uma cidade-ilusão.
O exílio não saiu de moda onde caiu o militarismo e se enraizou a democracia. Mas ninguém é mandado para o exílio em Brasília por algum inimigo. É como mandar uma carta a si mesmo pelo correio, na verdade. O autoexílio na capital se tornou tão comum que parece surreal a visão de pessoas realmente felizes. Como as que cantavam parabéns a plenos pulmões no bar do bloco ao lado. Mas, em Brasília, você ignora essa mesa e fixa o olhar na criança atirada à grama com cara de poucos amigos depois de ter colocado o dedo no bolo antes da hora.
Normal em qualquer outro lugar, o garoto ganha em Brasília um misticismo incomum e ares de cartão postal. Então esqueça a catedral, o congresso, a ponte JK. Pense num garotinho loiro de sete anos tostado pelo sol e com jeans surrados. Se algum dia vier a Brasília, mande isso a seus amigos. A verdadeira Brasília.
Passava pouco das dez da noite, quando decidi por um sanduíche para alimentar o sábado. Numa comercial não muito movimentada da Asa Norte, todas as seis mesas estavam ocupadas. Três por pessoas sozinhas e três por mais de uma pessoa desacompanhada. Solteiras ou não, solitárias. Porque Brasília é uma cidade estranha, veja bem. Teve as chances de ser um ode à sociabilidade, graças à imigração interminável e impiedosa que ainda lhe lota. Ilusão.
Tem propriedade para falar disso quem provou sua independência atravessando um dia sete com quarenta graus sobre os lençóis e por cinco dias seguidos vomitou a alma junto de seu ego. Porque o ego é a melhor fuga para pessoas solitárias, por se basear no orgulho próprio e em tentativas de encontrar a si mesmo na admiração alheia: a felicidade é secundária quando a sociedade aprova a tristeza. A mesma sociedade utópica criada por uma cidade-ilusão.
O exílio não saiu de moda onde caiu o militarismo e se enraizou a democracia. Mas ninguém é mandado para o exílio em Brasília por algum inimigo. É como mandar uma carta a si mesmo pelo correio, na verdade. O autoexílio na capital se tornou tão comum que parece surreal a visão de pessoas realmente felizes. Como as que cantavam parabéns a plenos pulmões no bar do bloco ao lado. Mas, em Brasília, você ignora essa mesa e fixa o olhar na criança atirada à grama com cara de poucos amigos depois de ter colocado o dedo no bolo antes da hora.
Normal em qualquer outro lugar, o garoto ganha em Brasília um misticismo incomum e ares de cartão postal. Então esqueça a catedral, o congresso, a ponte JK. Pense num garotinho loiro de sete anos tostado pelo sol e com jeans surrados. Se algum dia vier a Brasília, mande isso a seus amigos. A verdadeira Brasília.
13.4.09
Pedro pedreiro pela paz
Pedro pedreiro decidiu encontrar a paz
De universal a cristão, indo de bar em bar
Às voltas com os problemas que a cerveja traz
Umas vezes com a bíblia, outras no bilhar
Na saideira prometeu
"Salvador daqui sou eu"
Logo de cara decidiu "vou pra Israel
Problema tá lá, diz o Jornal Nacional
Propaganda diz que é só assinar uns papel
Fátima acha que é questão de bem contra o mal"
Pedro assim entrou na ONG
Sofrimento que se alongue
Pedreiro penseiro que ia esperar o trem
Esperando a ficha, esperando as intenções
Esperando o sol, esperando lá quem vem
Pra salvar de guerrilhas, enchentes, moções
Pobre diabo achou legal
Do bairro agora era o tal
Subiu num ônibus que levava ao Galeão
Quarenta e quatro horas embaixo de sol quente
Pra altitude de La Paz o primeiro avião
Na mala só caneta, cueca, escova e pente
A seu lado o observava
Uma infeliz iugoslava
"Em busca da paz me mandaram viajar
Todos felizes agora é questão de tempo
Na cordilheira ou numa calota polar
Pela nossa ONG encontrarão seu sustento"
A balcânica então riu
"Meu Deus, primeiro de abril!"
Pelas ruas de La Paz viu manifestações
Mas com os nativos não resolvia só no grito
Percebeu que lhe faltavam reais instruções
Agora só tinha mesmo a Santo Expedito
"Valha-me, paizinho meu!
Vê em que Pedro se meteu"
Ivana foi-se preparar para o socorro
Tolo era o homem, mas o coração era bom
Não precisava desse louco mato-ou-morro
Juntos poderiam se sentir num mesmo tom
Destino então era Belgrado
Sorte agora havia virado
Vida na Sérvia voltou ao tijolo-e-cimento
Paz era fácil de encontrar dentro de dois
À bondade o pedreiro estava agora atento
Primeiro o próprio, o restante vinha depois
No sossego surgia a calma
Que sua alma não mais espalma
De universal a cristão, indo de bar em bar
Às voltas com os problemas que a cerveja traz
Umas vezes com a bíblia, outras no bilhar
Na saideira prometeu
"Salvador daqui sou eu"
Logo de cara decidiu "vou pra Israel
Problema tá lá, diz o Jornal Nacional
Propaganda diz que é só assinar uns papel
Fátima acha que é questão de bem contra o mal"
Pedro assim entrou na ONG
Sofrimento que se alongue
Pedreiro penseiro que ia esperar o trem
Esperando a ficha, esperando as intenções
Esperando o sol, esperando lá quem vem
Pra salvar de guerrilhas, enchentes, moções
Pobre diabo achou legal
Do bairro agora era o tal
Subiu num ônibus que levava ao Galeão
Quarenta e quatro horas embaixo de sol quente
Pra altitude de La Paz o primeiro avião
Na mala só caneta, cueca, escova e pente
A seu lado o observava
Uma infeliz iugoslava
"Em busca da paz me mandaram viajar
Todos felizes agora é questão de tempo
Na cordilheira ou numa calota polar
Pela nossa ONG encontrarão seu sustento"
A balcânica então riu
"Meu Deus, primeiro de abril!"
Pelas ruas de La Paz viu manifestações
Mas com os nativos não resolvia só no grito
Percebeu que lhe faltavam reais instruções
Agora só tinha mesmo a Santo Expedito
"Valha-me, paizinho meu!
Vê em que Pedro se meteu"
Ivana foi-se preparar para o socorro
Tolo era o homem, mas o coração era bom
Não precisava desse louco mato-ou-morro
Juntos poderiam se sentir num mesmo tom
Destino então era Belgrado
Sorte agora havia virado
Vida na Sérvia voltou ao tijolo-e-cimento
Paz era fácil de encontrar dentro de dois
À bondade o pedreiro estava agora atento
Primeiro o próprio, o restante vinha depois
No sossego surgia a calma
Que sua alma não mais espalma
7.4.09
Estrondo verde
Nem todo latino fala espanhol e nem todo extraterrestre é marciano. A bandeira da causa jupiteriana voltou a tremular na semana que antecede as comemorações do sexagésimo aniversário – pouco mais de sete séculos terrestres – do habitante mais popular daquele planeta. Na ressaca da festa de 80 anos de Hebe Camargo, o verde tomou as páginas das revistas de celebridades com o retorno de Etezinho Verde das Antenas Longas à Terra, um "divórcio" que estava prestes a alcançar seu centenário.
Dono dos mais marcantes olhos âmbares do sistema solar, desde sua primeira aparição em solo terrestre Etezinho Verde tornou-se a principal prova de vida extraterrena. E nunca aceitou desconfiança dos seres humanos. Afinal, como na frase que celebrizou, "pra sair voando em carrinho de supermercado, só mesmo ET de Hollywood. Com tudo o que temos passado com a Grande Mancha Vermelha, nos machuca a desconfiança dos terráqueos".
Nascido em Ganímedes, satélite de Júpiter, Etezinho Verde teve uma infância complicada. Com a transferência do pai para Saturno, jamais se adaptou àquela atmosfera repleta de hélio e só teve a saúde normalizada ao poder respirar todo o metano de seu planeta de origem. Ou não. Uma tempestade que parecia passageira ganhou nome duas décadas depois do início dos ventos de 500 km/h e a Grande Mancha Vermelha já está ativa há mais de 400 anos terrestres.
Boa parte da população do planeta foi devastada e o simpático Etezinho Verde se empenhou numa viagem para a desconhecida Terra na desesperada tentativa de sobrevivência. Sua chegada ajudou Galileu a comprovar a descoberta das luas de Júpiter, mas o alvoroço criado pelo tribunal do Santo Ofício fez com que o extraterrestre deixasse de dar suas contribuições para o conhecimento humano.
Ainda assim, Etezinho Verde das Antenas Longas continuou célebre com a ajuda de empresas que sempre souberam explorar sua popularidade: seja na linha autorizada de action-figures da Mattel ou na concorrida versão do Lego: Comando Espacial Júpiter. De volta à Terra, tem na agenda palestras motivacionais e encontros com importantes figuras políticas do cenário internacional. Além, claro, de algumas noites de autógrafos com as crianças que ajudaram a manter sua fama perene a tantos anos-luz de distância.
Dono dos mais marcantes olhos âmbares do sistema solar, desde sua primeira aparição em solo terrestre Etezinho Verde tornou-se a principal prova de vida extraterrena. E nunca aceitou desconfiança dos seres humanos. Afinal, como na frase que celebrizou, "pra sair voando em carrinho de supermercado, só mesmo ET de Hollywood. Com tudo o que temos passado com a Grande Mancha Vermelha, nos machuca a desconfiança dos terráqueos".
Nascido em Ganímedes, satélite de Júpiter, Etezinho Verde teve uma infância complicada. Com a transferência do pai para Saturno, jamais se adaptou àquela atmosfera repleta de hélio e só teve a saúde normalizada ao poder respirar todo o metano de seu planeta de origem. Ou não. Uma tempestade que parecia passageira ganhou nome duas décadas depois do início dos ventos de 500 km/h e a Grande Mancha Vermelha já está ativa há mais de 400 anos terrestres.
Boa parte da população do planeta foi devastada e o simpático Etezinho Verde se empenhou numa viagem para a desconhecida Terra na desesperada tentativa de sobrevivência. Sua chegada ajudou Galileu a comprovar a descoberta das luas de Júpiter, mas o alvoroço criado pelo tribunal do Santo Ofício fez com que o extraterrestre deixasse de dar suas contribuições para o conhecimento humano.
Ainda assim, Etezinho Verde das Antenas Longas continuou célebre com a ajuda de empresas que sempre souberam explorar sua popularidade: seja na linha autorizada de action-figures da Mattel ou na concorrida versão do Lego: Comando Espacial Júpiter. De volta à Terra, tem na agenda palestras motivacionais e encontros com importantes figuras políticas do cenário internacional. Além, claro, de algumas noites de autógrafos com as crianças que ajudaram a manter sua fama perene a tantos anos-luz de distância.
1.4.09
O lobo e a ovelha
Após ser atacado por uma matilha de cães, um lobo ferido repousava a certa distância de um riacho. Debilitado e faminto, aguardava desesperado por algum auxílio. Até que percebeu uma ovelha se aproximar e implorou-lhe por um pouco da água do regato.
"Se você me trouxer água," argumentou o lobo, "estarei em condições de conseguir meu próprio alimento. E é claro que sempre me lembrarei de seu gesto".
A ovelha não teve problemas para pensar um pouco, calcular seus riscos e decidir que seria melhor ajudar o lobo que agora estava ferido e poderia em algum momento se recuperar e se vingar da omissão. E assim a ovelha cuidou do lobo até o resto do dia e, ao cair da noite, tornou-se seu alimento.
Moral da história: um hipócrita tem palavras gentis e disfarça suas verdadeiras intenções - mas, se nele a vítima confia, não tem muito do que reclamar.
"Se você me trouxer água," argumentou o lobo, "estarei em condições de conseguir meu próprio alimento. E é claro que sempre me lembrarei de seu gesto".
A ovelha não teve problemas para pensar um pouco, calcular seus riscos e decidir que seria melhor ajudar o lobo que agora estava ferido e poderia em algum momento se recuperar e se vingar da omissão. E assim a ovelha cuidou do lobo até o resto do dia e, ao cair da noite, tornou-se seu alimento.
Moral da história: um hipócrita tem palavras gentis e disfarça suas verdadeiras intenções - mas, se nele a vítima confia, não tem muito do que reclamar.
29.3.09
Oba, futebol
Algumas lendas dizem que os lobos procuram alguma coisa que não podemos ver ou sentir. Por isso estariam sempre em movimento: algumas espécies podem percorrer até 200km em 24 horas vigiando seu território. Se Fenrir, filho de Loki, é tido como o lobo mais importante da mitologia geral, para o ocidente é mais marcante a estátua de bronze que representa a lupa capitolina, fêmea que se destacou de sua alcateia para alimentar Rômulo e Remo, fundadores de Roma.
Séculos depois da tal amamentação, a capital não desgarrou da histórica rivalidade com o que fica ao norte, em qualquer campo em que competissem. Da cultura de verdade ao esporte como cultura. Piemonte, Ligúria e Lombardia dominavam esses cenários até o fim da década de 20, quando a lupa capitolina foi importada com a missão de rivalizar com o trio e dar ao velho Lácio um pouco de honradez nos campos.
Se a região já tinha uma representante homônima, para a loba ficou o encargo de impôr o nome de sua cidade e carregar as cores do templo de Zeus presentes em seu Capitólio. Ela podia pensar em várias formas para construir uma história tão eterna quanto a própria cidade: conquistar a Europa se envolvendo em escândalos lotéricos, conquistar a Itália se envolvendo em escândalos políticos ou ganhar os holofotes se envolvendo em escândalos administrativos.
Mas a boa visão, a audição apurada e o olfato aguçado deram à velha loba verdadeiros motivos para se eternizar, passando incólume por todas as crises. Sempre pôde perceber o que tinha às suas costas e atravessou a vida se aproveitando dos dentes afiados em maxilares fortes para caçar velhas senhoras, serpentes e águias ao lado de um ou outro lobo que chegava para compor sua temida alcateia.
Se nunca foi a mais aclamada, ao menos nunca duvidaram de sua condição de fêmea alfa e de sua principal estratégia de caça: a resistência. A loba jamais precisou de elementos-surpresa ou acelerar uma perseguição para surpreender. E sempre evitou que as caçadas se tornassem ciência exata. Porque sabe que a planificação de emoções acabaria por eliminá-las. A velha loba tem em si e por si uma fé que nunca tem fim. E que não se discute, apenas se ama.
Séculos depois da tal amamentação, a capital não desgarrou da histórica rivalidade com o que fica ao norte, em qualquer campo em que competissem. Da cultura de verdade ao esporte como cultura. Piemonte, Ligúria e Lombardia dominavam esses cenários até o fim da década de 20, quando a lupa capitolina foi importada com a missão de rivalizar com o trio e dar ao velho Lácio um pouco de honradez nos campos.
Se a região já tinha uma representante homônima, para a loba ficou o encargo de impôr o nome de sua cidade e carregar as cores do templo de Zeus presentes em seu Capitólio. Ela podia pensar em várias formas para construir uma história tão eterna quanto a própria cidade: conquistar a Europa se envolvendo em escândalos lotéricos, conquistar a Itália se envolvendo em escândalos políticos ou ganhar os holofotes se envolvendo em escândalos administrativos.
Mas a boa visão, a audição apurada e o olfato aguçado deram à velha loba verdadeiros motivos para se eternizar, passando incólume por todas as crises. Sempre pôde perceber o que tinha às suas costas e atravessou a vida se aproveitando dos dentes afiados em maxilares fortes para caçar velhas senhoras, serpentes e águias ao lado de um ou outro lobo que chegava para compor sua temida alcateia.
Se nunca foi a mais aclamada, ao menos nunca duvidaram de sua condição de fêmea alfa e de sua principal estratégia de caça: a resistência. A loba jamais precisou de elementos-surpresa ou acelerar uma perseguição para surpreender. E sempre evitou que as caçadas se tornassem ciência exata. Porque sabe que a planificação de emoções acabaria por eliminá-las. A velha loba tem em si e por si uma fé que nunca tem fim. E que não se discute, apenas se ama.
26.3.09
Elemental
Bate perna
Batalha parada
Batida perene
Bote preso
Acende, nada
Assopra, nada
Acima, nada
Assola, nada
Olhar
Sussurrar
Abaixar
Encarar
Inspirar
Esperar
Ar
Ar
Encarar
Transpirar
Ar
Ar
Expirar
Ar
Ar
Ar
Batalha parada
Batida perene
Bote preso
Acende, nada
Assopra, nada
Acima, nada
Assola, nada
Olhar
Sussurrar
Abaixar
Encarar
Inspirar
Esperar
Ar
Ar
Encarar
Transpirar
Ar
Ar
Expirar
Ar
Ar
Ar
24.3.09
Geração Coca-Cola
A tampa da Coca-Cola é enrosqueada na fábrica de forma duplamente hermética. E assim permanece até sofrer alguma influência externa. Tradicionalmente, o mesmo ocorre com os humanos, seres fechados e estranhos até que alguém lhes escape o gás.
Porque o ser humano põe na roda as perguntas e previsões, as novidades e indecisões, as tragédias e o gás da Coca. E tudo isso com a tampa intacta. Porque é de seu feitio esperar que o gás escape por conta própria ao invés de pôr na roda aquilo que é capaz de lhe tirar o ar com todas aquelas suas bolhas.
Pedro tentava entender algo sem jamais ter entendido porque nunca parava de entender de tudo. E tentava fazer com que sua voz fizesse entender algo que até então não passava de um pouco do que se entendia por Pedro. Já que aquilo que tira Pedro do sério é o que lhe põe pra fora por dentro de si mesmo.
Pedro não entendia muitas vidas e então nem lhes dava valor pelo simples fato de lhe parecer que elas não lhe entendiam. O que lhe fazia sentir-se numa festa para a qual não tinha entrada, já que não havia ainda entendido que estava na sua vez de fazer os convites e que para isso fosse necessário distorcer algo - nem que fosse sua tampa de Coca-Cola.
E qual não foi sua surpresa quando acordou numa manhã anímica de domingo e durante o anêmico café-da-manhã entendeu que precisava de novos rumos para seus convites. Bastou olhar para dentro para enxergar que sua tampa de Coca-Cola era a de uma Fanta e passara tanto tempo soltando o gás do refrigerante errado.
Porque o ser humano põe na roda as perguntas e previsões, as novidades e indecisões, as tragédias e o gás da Coca. E tudo isso com a tampa intacta. Porque é de seu feitio esperar que o gás escape por conta própria ao invés de pôr na roda aquilo que é capaz de lhe tirar o ar com todas aquelas suas bolhas.
Pedro tentava entender algo sem jamais ter entendido porque nunca parava de entender de tudo. E tentava fazer com que sua voz fizesse entender algo que até então não passava de um pouco do que se entendia por Pedro. Já que aquilo que tira Pedro do sério é o que lhe põe pra fora por dentro de si mesmo.
Pedro não entendia muitas vidas e então nem lhes dava valor pelo simples fato de lhe parecer que elas não lhe entendiam. O que lhe fazia sentir-se numa festa para a qual não tinha entrada, já que não havia ainda entendido que estava na sua vez de fazer os convites e que para isso fosse necessário distorcer algo - nem que fosse sua tampa de Coca-Cola.
E qual não foi sua surpresa quando acordou numa manhã anímica de domingo e durante o anêmico café-da-manhã entendeu que precisava de novos rumos para seus convites. Bastou olhar para dentro para enxergar que sua tampa de Coca-Cola era a de uma Fanta e passara tanto tempo soltando o gás do refrigerante errado.
21.3.09
Po-exígua
Era uma vez a minha noite
Era uma vez a meia vida
Era uma vez o meu ideal
Era uma vez o meio vício
Continue sendo a noite indício
Continue sendo a vida irreal
Continue sendo o ideal suicida
Continue sendo o vício açoite
Termine cálida a meia-noite
Termine sólida a minha vida
Termine gélido o meio ideal
Termine pálido o meu vício
As quatro estações
Quando não se há do que falar, sempre vale falar de sexo. Porque, queira ou não, faça ou não, provavelmente é o único tema que nunca saiu de moda e passou incólume às cruzadas, aos descobrimentos e às revoluções. Isso o torna uma instituição histórica mais sólida que a Igreja Católica, por exemplo. E é por isso que Marcos não foi para a missa de domingo e tentava convencer Daniela de que era melhor pecar em casa mesmo.
Já a dor de cabeça, provavelmente, surgiu como uma ação de contracultura às decapitações, aos enforcamentos e às fogueiras. E também atravessou ilesa todas as últimas fases históricas, atingindo mais mulheres do que homens, numa absurda proporção. E agindo como o mais eficiente anticorpo de seus organismos. E é por isso que Daniela não saiu do sofá xadrez e tentava convencer Marcos de que era melhor pedir comida chinesa, umas cervejinhas e passar a noite com algum crédito divino.
A história, portanto, fez a deontologia sexual instituir a dor de cabeça como o extremo oposto do ato em si ou de qualquer uma de suas ramificações. Disso Marcos se lamentava enquanto Daniela deixava cair no sofá xadrez um broto qualquer de bambu e enquanto o calor de Brasília esquentava uma Skol e enquanto uns homens falavam de futebol na tevê e enquanto a primeira formiga sem enxaqueca se aproveitava do molho agridoce e enquanto o que havia de mais pecaminoso naquela sala eram as imagens mentais que vinham junto dos barulhos que insistiam em chegar da parede ao lado.
E enquanto Daniela comia a primavera em rolinhos e o outono atravessava o corpo de Marcos e o verão enquadrava somente a cerveja e o inverno parecia questão de tempo, Marcos decidiu que um apartamento como o do vizinho era seu lugar. Perdeu as bases, largou as traves, pegou as chaves e pensou em se apressar.
Mas só precisou se levantar para decidir que não importava muito em que estação estava, que o que valia era fazer com que a cerveja lhe desse o que a dor de cabeça não pudera lhe dar. Porque dor de cabeça maior era deixar que uma dor de cabeça qualquer derrubasse as folhas de uma forma que nenhuma primavera pudesse chamar de volta.
Já a dor de cabeça, provavelmente, surgiu como uma ação de contracultura às decapitações, aos enforcamentos e às fogueiras. E também atravessou ilesa todas as últimas fases históricas, atingindo mais mulheres do que homens, numa absurda proporção. E agindo como o mais eficiente anticorpo de seus organismos. E é por isso que Daniela não saiu do sofá xadrez e tentava convencer Marcos de que era melhor pedir comida chinesa, umas cervejinhas e passar a noite com algum crédito divino.
A história, portanto, fez a deontologia sexual instituir a dor de cabeça como o extremo oposto do ato em si ou de qualquer uma de suas ramificações. Disso Marcos se lamentava enquanto Daniela deixava cair no sofá xadrez um broto qualquer de bambu e enquanto o calor de Brasília esquentava uma Skol e enquanto uns homens falavam de futebol na tevê e enquanto a primeira formiga sem enxaqueca se aproveitava do molho agridoce e enquanto o que havia de mais pecaminoso naquela sala eram as imagens mentais que vinham junto dos barulhos que insistiam em chegar da parede ao lado.
E enquanto Daniela comia a primavera em rolinhos e o outono atravessava o corpo de Marcos e o verão enquadrava somente a cerveja e o inverno parecia questão de tempo, Marcos decidiu que um apartamento como o do vizinho era seu lugar. Perdeu as bases, largou as traves, pegou as chaves e pensou em se apressar.
Mas só precisou se levantar para decidir que não importava muito em que estação estava, que o que valia era fazer com que a cerveja lhe desse o que a dor de cabeça não pudera lhe dar. Porque dor de cabeça maior era deixar que uma dor de cabeça qualquer derrubasse as folhas de uma forma que nenhuma primavera pudesse chamar de volta.
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