23.4.13

Onésio e Dolores

Embaralhada pelo Alzheimer, Dolores corrompia as lembranças a cada nascer do sol. Conservou poucas memórias. Essas, de tão reais, revisitava logo ao abrir os olhos. E sorria sempre ao ver Onésio, aquele jovem rapaz da cidade, chegar a cavalo, mais nítido que qualquer reminiscência de 73 anos. E o moço, cortês, não hesitava em retribuir o gesto.

Companheiro diligente, Onésio jamais saía da sela. Tudo pelo bom sorriso de Dolores. Assim, visitava a roça dezenas de vezes por dia e outro punhado à noite. Quando a lua acendia, Dolores pensava naquele homem. Sumira sem ela perceber. Dos rastros e ciumeiras, só mesmo as lembranças. Parada, voltava a enxergá-lo. Sorria.

Conhecia o amado, não pretendia vê-lo enfastiado. Por isso, todas as noites, se revoltava pela primeira vez com o velho corcunda que vinha deitar-se a seu lado. Onésio vai voltar, te matar e me levar junto, anunciava. O senhor saía sorrindo para o sofá, velava de lá a alienação alheia.

Até o momento em que o jovem Onésio realmente voltou. Buscou Dolores pela mão e ela se foi, feliz. O velho ruiu na cama pela primeira vez em tantos anos. Deixou-a somente ao notar que uma jovem de vestido de flanela listrada o convidava para acompanhá-la. Que belo sorriso, pensou.

18.3.13

Vírgulas self-service

Caminho infinito pensamento absoluto desejo sereno saber estúpido desvio súbito medo delicado sinal repentino juízo abafado beijo inocente carinho intenso sorriso óbvio.

19.1.13

Três pedidos

Marluci encontrou uma lâmpada mágica esquecida entre duas seções do sex shop. Vazia, empoeirada e em busca de algum esfregador, as duas. Escondeu-a na bolsa enquanto tentava encomendar mentalmente três pedidos.

Prioridade era um romance à Anastasia Steele, lhe parecia óbvio. O sonhado amor à primeira vista ficaria para a segunda rodada. Ou terceira? Era melhor assegurar logo a independência financeira, quem sabe. As dúvidas afligiram-na, impediram qualquer tentativa de compra.

Como as lingeries lhe travassem o pensamento, Maria Lucilene decidiu deixar o estabelecimento para definir prioridades, lâmpada à tiracolo e cesta de compras vazia.

Foi quando o alerta de furto apitou. Tal dádiva mística custava R$ 69,90. Por esse preço, melhor levar levar calcinha nova, algemas e chibata. E assim ela fez, a lâmpada que se danasse.

17.1.13

Conto do pardal

De segunda a sexta-feira, sempre ao cair da noite, aquela negra passava apressada, displicente; imprudente, até. 

Tudo o que ele podia fazer era jogar uma piscadela — e dessa forma agia diariamente, incansável. Imóvel ao lado da pista, não perdia qualquer chance de flagrá-la.

E assim cada piscada fazia reluzir a rua, convertia esse momento diário em fotografias inesquecíveis. Por algumas semanas enviou cada um desses retratos a ela, sua razão de existir, e não obteve resposta.

Até que certo dia a caminhonete foi apreendida por excesso de multas em uma blitz do Detran. O radar fixo jamais a viu novamente.

15.1.13

Mega-Sena acumulada

Juliane orquestrou o plano perfeito, a quarta-feira seria libertadora. Deixou o fulano esperando, abriu o site da Caixa e atualizou a página 14 vezes. Frustrada de pobre, chorou. Catou o telefone e se libertou para a quarta-feira.

2.1.13

Branco no preto

E então notou, no mesmo fiapo de segundo, um fio branco no cabelo e outro na barba. A ficha caiu de arrancada: os anos passavam, estavam certos.

Quando puxou o pensamento, a mente sangrou um bocado. Deu uma coceira no eu-lírico. E então, perdido, eureca!, descobriu que vinha aparando o português sem nem perceber.

Sovina, encurtava as orações a ponto de levar Deus a um bar para beber esses tempos difíceis. E sabe-se lá quantos períodos levou até conseguir colocar o preto no branco. Comemorou, mesmo assim. Pelo menos agora não faltaria mais branco.